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O avesso do avesso

Gustavo Varella CabralCélebre expressão de Caetano em “Sampa”, o “avesso do avesso do avesso” é uma homenagem ao poeta concretista Décio Pignatari, mas também uma pista de como tentava o artista expressar o que sentia na imensa e multifacetada São Paulo.

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Poemas e formas à parte, vivemos cotidianamente o desafio de compreender o contrário do que parece, conceber o oposto do que se mostra, acostumarmo-nos a conviver com o  paradoxo em que se transformou a existência humana nas grandes cidades. Negligenciamos nossa saúde à cata de dinheiro, para depois gastarmos o dinheiro tentando recuperar a saúde.

Brigamos para proteger nossa intimidade da curiosidade alheia, mas nós mesmos à expomos em incontáveis postagens nas redes sociais. Trabalhamos duro para proporcionar aos nossos filhos um conforto que muitos de nós sequer sonhávamos em ter há alguns anos, mas percebemos que a ausência necessária a esse intento nos rouba a convivência, que aperta o laço das relações.

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Ingerimos o dobro do que necessitamos e depois nos exercitamos à exaustão para queimamos o excesso que consumimos. Elegemos representantes para a defesa de nossos direitos, para depois descobri-los nossos maiores traidores. Desejamos a paz e o bem, mas direta ou indiretamente endossamos discursos que pregam reações violentas como forma de garanti-los. Nunca se falou tanto em ecologia, mas a poluição virou política de desenvolvimento.

Reclamamos da carestia, comprando coisas que jamais usaremos. Exigimos dos outros comportamentos que não temos. Apontamos, nos outros, as falhas que mais nos caracterizam. Ridicularizamos, no alheio, o mesmo tipo de postura da qual nos envergonhamos na intimidade. Retornando a Caetano e à Sampa, ao dizer que “Narciso acha feio o que não é espelho” o poeta cutucava os que tinham a si mesmos como paradigma do belo e do bom, ao passo que hoje o que se percebe é o oposto: poucos são os satisfeitos consigo mesmos, e a perfeição está no alheio.

Quão mais distante, mais perseguido. Quão mais cobiçado, mais negligenciado quando alcançado. Quase 40 anos se passaram do lançamento de Sampa. O Brasil enricou, como se diz no interior, mas há cada vez mais povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas. Aumentou a força da grana que ergue e destrói coisas belas e à feia fumaça que sobe, apagando as estrelas acrescentaram o pó de minério que suja vidas, pulmões e lares, a lama que extermina rios e lagos, os congestionamentos sem fim que transformaram o trânsito fluido num episódio raro e efêmero na estagnação das veias que irrigam as cidades.

Crescemos ou só inchamos? Evoluímos, ou nossos passos adiante são apenas resultado de tropeços? A impressão que dá a quem contempla o mundo de longe é que somos só o avesso daquilo que um dia imaginamos que seríamos.

 

 

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