Foco

O déficit de aprendizagem justifica o retorno às aulas presenciais?

Para evitar ainda mais prejuízos educacionais, alguns especialistas apoiam a retomada das aulas presenciais. Outros, porém, discordam.

O déficit de aprendizagem justifica o retorno às aulas presenciais?; criança de máscara mede temperatura na testa, ao fundo outro aluno aguarda a sua vez
Freepik

Diversos estudos têm mostrado que os prejuízos à aprendizagem durante a pandemia são inquestionáveis. Estudo do Banco Mundial divulgado em março mostrou que, sem aulas presenciais, 7 em cada 10 alunos no Brasil poderão terminar o ensino fundamental sem ler nem entender textos simples. Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) também indicou que após um ano de início da pandemia de Covid-19, houve retrocesso em quase todos os principais indicadores relacionados à infância, a educação entre eles. Recentemente, o secretário da Educação do Estado de São Paulo, Rossieli Soares, afirmou que a suspensão das aulas presenciais nas escolas trará “um problema geracional inestimável”, que afetará a qualidade do ensino superior. Mas, apesar de reconhecimento do déficit de aprendizagem, não há consenso quanto ao retorno às aulas presenciais neste momento de agravamento da crise sanitária no país. Enquanto alguns especialistas defendem a volta às aulas presenciais o quanto antes, outros acreditam que a situacão exige cautela e um pouco mais de paciência para a reabertura das escolas.

ANÚNCIO

Essa é a opinião de Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ela diz ser inegável a perda de aprendizado, principalmente na alfabetização a distância, mas ainda assim acha que é não é hora de aulas presenciais. «Dentre todos os trabalhos que os professores fazem, a alfabetização talvez seja o mais artesanal, não tem como dar aula coletiva de alfabetização. Tem que olhar para cada criança e a produção textual dela, em que estágio do processo de alfabetização se encontra. Crianças de 8 e 9 anos que não se alfabetizaram, infelizmente são uma realidade», afirma a diretora da FGV, que também é professora visitante na Faculdade de Educação de Harvard (EUA) e já atuou como secretária municipal de educação do Rio de Janeiro.

Claudia cita um estudo feito na Bélgica, que mostra que os dois meses fora da escola naquele país vão trazer impactos inclusive no salário futuro dessas crianças, quando adultas. «Há também perda de vínculo com a escola, porque a aprendizagem é um processo humano, de aprofundamento, o que foi prejudicado no ensino remoto. E ao perder o vínculo com a escola, as chances de abandoná-la são imensas e já estamos lidando com isso. Ao conversar com autoridades educacionais do mundo inteiro, todos se dizem perplexos com a perda, o que não quer dizer que ela não possa ser reposta», afirma Claudia. Isso se aplica, porém, às famílias que conseguem participar das aulas remotas, mas não vale para as famílias mais vulneráveis, nas quais, segundo a diretora, o efeito escola jamais será recuperado. «Há uma retomada do trabalho infantil, a criança está indo trabalhar para enfrentar a crise econômica que acompanha crise sanitária. Se não tivermos políticas públicas competentes, estamos jogando as crianças na miséria, a possibilidade de mobilidade social não vai existir mais», afirma.

Recomendados

A ex-secretária de educação diz entender a preocupação dos governos em tentar levar crianças de volta à escola, contudo avalia não ser o momento ideal para o retorno às aulas. «Há um certo sentido de urgência, que tem que ser cotejado com os riscos à saúde. 

Não sou epidemiologista, mas tenho a intuição que talvez valesse a pena esperar mais um pouco para voltar», pontua Claudia.

Leia também: Estudo mostra impacto da pandemia em crianças da educação infantil

Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, também acredita que não é hora de retomar as aulas presenciais nas escolas. Ela ressalta que é preciso, primeiro, garantir as condições adequadas para a oferta do ensino remoto emergencial.

«Nada que coloque em iminente risco a vida pode justificar que a gente retome as aulas presenciais. Não adianta resolver o déficit de aprendizagem e matar as pessoas, é preciso estar vivo para resolver o déficit, logo não posso justificar a reabertura devido às perdas no aprendizado», diz Catarina.

A dirigente destaca a necessidade de discutir quais condições são necessárias para retomar atividades presenciais sem colocar vidas em risco. «Esse tem que ser o pressuposto básico do governo. Em nenhum lugar temos a garantia de que as aulas presenciais não colocam a vida em risco». Ela recorda que os que mais necessitam da escola e mais sofrem com a perda na aprendizagem são os mais vulneráveis. «Crianças em condições de violência, que precisam da escola não só pela questão da educação, mas também pela alimentação, socialização, falta de infraestrutura e espaço em casa para estudar, entre outros aspectos. Cabe ao governo garantir melhores condições de vida a essas famílias para que não sejam tão dependentes da escola», relata.

Catarina lembra ainda que as novas cepas do coronavírus são mais contagiosas e não faz sentido abrir as unidades de ensino agora. «Fechamos escolas em situação bem mais tranquila e agora queremos reabrir no pior momento. Tem a ver com o nível de compromisso social, com o coletivo, que as pessoas têm em relação ao vírus. Não é uma responsabilidade individual, do tipo eu mando (meu filho para a escola) e assumo o risco. É uma questão coletiva, precisamos entender essa lógica», conclui a professora.

Leia também: Retomada das aulas acirra brigas no WhatsApp

O déficit de aprendizagem justifica a retomada das aulas presenciais

Para Debora Garofalo, coordenadora do Centro de Inovação da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, é essencial que a sociedade e os pais compreendam que estamos vivenciando um processo remoto com tentativas de fazer esse retorno presencial. «Isso sem dúvida nenhuma tem um profundo déficit de aprendizagem em crianças e jovens, que levou a diversos problemas psicológicos por conta da ausência da escola, a qual não é apenas um local de aprendizagem. Ela cumpre outro papel, de proteção da infância, de acolhimento, de integração, mas também de socialização do espaço escolar, pautado em uma educação integral», diz a coordenadora, que em 2019, foi considerada uma das 10 melhores professoras do mundo no Global Teacher Prize.

Ela menciona relatório do Banco Mundial, que mostra que, no Brasil, ao menos 5,5 milhões de meninos e meninas não conseguiram fazer algum tipo de estudo remoto. «Isso significa que a chance dessas crianças e jovens abandonarem a escola é muito maior. O Banco Mundial também mostra que a pandemia pode levar a uma redução global de proficiência média de 16 pontos, ou seja, esses estudantes podem retroceder no processo de aprendizagem. São todos fatores que devem ser considerados nesse momento para esse retorno gradual, que repito, não é um retorno feito de qualquer jeito, é um retorno que deve levar em conta protocolos e saneamentos necessários ao distanciamento social, considerando a educação como pilar fundamental para o desenvolvimento não só cognitivo, mas também socioemocional dessas crianças e jovens», declara Débora.

Criado durante a pandemia, o movimento civil Escolas Abertas, que, segundo os organizadores, tem entre 150 mil e 200 mil apoiadores em todo o Brasil, defende a volta às aulas com protocolos seguros.

“A gente acha que o déficit de aprendizagem justifica, sim, a retomada das aulas presenciais. Existem diversas pesquisas publicadas que mostram que o ensino remoto não funciona», afirma Isabel Quintela, porta-voz do movimento.

Ela destaca a segurança de escolas que seguem os protocolos estabelecidos, e a baixa transmissão do coronavírus nas escolas em comparação com a comunidade, como fatores que tornam a volta segura.

«A gente escuta muito as pessoas falarem que o aprendizado se recupera, mas a vida não, mas não é verdade que o aprendizado se recupera. A Organização das Nações Unidas (ONU) chegou a afirmar que este ano de escolas fechadas no Brasil pode significar uma perda de duas décadas de aprendizado e isso não se recupera em um ano nem em dois anos. Trata-se de uma geração que terá sua vida afetada de forma permanente pelo fechamento das escolas», finaliza Isabel. 

Canguru News preparou uma lista com 10 tópicos que são utilizados por pais, educadores, profissionais da saúde e outros especialistas para justificar ou criticar o retorno presencial neste momento. Leia mais sobre o assunto aqui.

Leia também: Crianças na pandemia: menos tela, mais meditação

Quer receber mais conteúdos como esse? Clique aqui para assinar a nossa newsletter. É grátis!

Tags

Últimas Notícias