Muitos defendem que política e futebol não devem se misturar. Mas a Copa do Mundo nem sempre consegue ser apenas uma festa entre nações. Esse encontro entre povos pode virar também um palco de rixas históricas, como mostra a maior crise política da competição até agora, protagonizada pela Sérvia, adversária no Brasil na sua terceira e decisiva partida da fase de grupos nesta quarta-feira.
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Após o último jogo dos sérvios, contra a Suíça, tanto o presidente da federação de futebol do país, Slaviša Kokeza, quanto o técnico do time, Mladen Krstajić, foram punidos por criticarem os eventos em campo com alusões a fatos políticos.
Esse tipo de manifestação é proibida pela Federação Internacional de Futebol, a Fifa, para atletas e torcedores. Gestos dessa natureza também renderam multas para três jogadores suíços.
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A Sérvia acabou derrotada pela Suíça de virada por 2 a 1, mas a disputa esportiva foi ofuscada pela forma como transbordou para o campo a tensão dos Bálcãs, península no sudeste da Europa onde está a Sérvia e que há séculos é um epicentro de guerras e confrontos.
O técnico sérvio usou uma rede social para extravasar sua fúria contra o árbitro de vídeo, o VAR, por considerar que, em um lance em que o atacante Aleksandar Mitrovic foi derrubado no chão por dois defensores suíços, não foi considerado pênalti.
«Infelizmente, só os sérvios são condenados por uma justiça seletiva, uma vez no maldito [Tribunal de] Haia e hoje no VAR no futebol», escreveu Krstajić.
Foi uma referência ao tribunal especial estabelecido pela ONU em Haia, na Holanda, para julgar atos cometidos na antiga Iugoslávia em meio a conflitos étnicos, insurgências e guerras de independência das repúblicas que formavam aquela nação, entre 1991 e 2001. O tribunal puniu majoritariamente líderes e nacionalistas sérvios por crimes de guerra.
Em entrevista à imprensa sérvia no sábado, o técnico voltou a tocar no tema ao criticar o juiz da partida, Feliz Brych. «Não daria a ele um cartão amarelo ou vermelho, mandaria ele para Haia. Eles poderiam julgá-lo, como fizeram conosco.»
Por sua vez, o líder da federação sérvia também foi punido por dizer em uma entrevista à BBC que sua seleção havia sido vítima de um «roubo brutal». Ele ainda acusou a Fifa de favorecer a Suíça ao indicar um juiz alemão. A Suíça e a Alemanha são países vizinhos e têm uma relação bastante próxima – o alemão é um dos idiomas oficiais da Suíça e falado pela maioria do país.
«Todos sabemos que mais da metade da população da Suíça é alemã. Membros da comissão técnica, jogadores e a população da Sérvia, todos estão muito desapontados pela injustiça causada por algumas pessoas da Fifa», declarou Kokeza.
Krstajić e Kokeza foram multados pela Fifa em 5 mil francos suíços (R$ 19 mil) cada um – e as punições à Sérvia não pararam por aí. A federação do país também foi multada em 54 mil francos suíços (R$ 206 mil) pelo comportamento da sua torcida, que exibiu cartazes e mensagens consideradas discriminatórios no jogo e atirou objetos no campo.
Provocação da Suíça
É verdade que os primeiros a trazerem a política para o campo foram os suíços. Os jogadores Granit Xhaka e Xherdan Shaqiri comemoraram seus respectivos gols sobre a Sérvia fazendo o mesmo gesto: com os dedões entrelaçados e as palmas da mão viradas para o corpo, eles movimentaram as mãos como asas de um pássaro. Não foi coincidência, foi uma provocação, que o presidente da federação sérvia qualificou de «escandalosa e vergonhosa».
Este é um símbolo patriótico, a águia de duas cabeças, presente na bandeira Albânia. Os dois jogadores da Suíça têm ascendência albanesa e ligação com Kosovo, ex-província da Sérvia que se declarou independente em 2008, algo não reconhecido pelos sérvios até hoje.
O pai de Xhaka passou três anos e meio como prisioneiro político na Iugoslávia por protestar contra o controle iugoslavo sobre Kosovo. Em um post publicado depois do jogo, o jogador suíço se referiu a si mesmo como «Granit Kosovo», mas depois apagou a publicação.
Já Shaqiri nasceu na Iugoslávia antes de imigrar para a Suíça quando criança. Ele ainda traz em uma das suas chuteiras a bandeira de Kosovo, algo que foi permitido pela Fifa e alvo de uma reclamação formal da Sérvia.
«Foi apenas emoção», disse ele sobre sua comemoração. «Estou muito feliz de ter feito esse gol. Não é nada além disso. Acho que não devemos falar disso agora.»
«É algo que merece ser condenado por todo o mundo do futebol», disse Kokeza, da Sérvia. «Não foi só a provocação dos jogadores suíços. Um detalhe suficiente foi a chuteira de um deles – uma chuteira de um país que não existe.»
Na Sérvia, o jornal Informer, que apoia o governo, publicou que «o clã albanês no time de ‘fabricantes de relógio’ já estava atirando há semanas flechas envenenadas, então, a partida não poderia ter ficado livre de provocações».
A Fifa proíbe provocações à torcida e multou Shaqiri e Xhaka em 10 mil francos suíços cada um, e o capitão do time, Stephan Lichtsteiner, em 5 mil francos suíços por ter imitado o gesto. Foi a punição mais branda do código de ética da entidade, que prevê a possibilidade de suspensão por até dois jogos em casos assim.
Hostilidade histórica
A briga entre sérvios e kosovares é antiga. No início do século 20, durante as guerras dos Bálcãs, países da região lutaram pelo controle dos territórios remanescentes do Império Otomano. Como resultado, a Sérvia tomou o controle de Kosovo dos turcos.
Na 2ª Guerra Mundial, boa parte do território kosovar passou a fazer parte da Albânia e, ao fim do conflito, foi incorporado à Iugoslávia, de maioria sérvia. Kosovo teve sua autonomia reconhecida constitucionalmente em 1974 e passou a ter um governo próprio, mas essa autonomia foi revogada e o governo, dissolvido, em 1989 e 1990.
No início da década seguinte, a república socialista da Iugoslávia foi dissolvida com independência de Bósnia, Croácia, Macedônia e Eslovênia, com diferentes graus de violência.
Em Kosovo, sob o controle sérvio, ganharam força os movimentos separatistas. No fim dos anos 1990, uma dura repressão sérvia à população albanesa na região só teve fim após uma intervenção militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Há dez anos, a população de maioria albanesa declarou sua independência da Sérvia, reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) e a maioria dos países da União Europeia, mas não pela Rússia, aliada da Sérvia, e por sérvios em Kosovo.
Jogo em clima de tudo ou nada
Essa rivalidade e ressentimentos históricos já eram palpáveis com a tensão presente no estádio mesmo antes do jogo começar. Shaqiri foi bastante vaiado pela torcida sérvia ao ter seu nome anunciado no estádio.
Depois do jogo, o técnico suíço, Vladimir Petković, ao ser questionado sobre a comemoração dos seus jogadores, contemporizou: «Você nunca deve misturar futebol e política. É importante torcer e ter respeito».
Já o presidente kosovar, Hashim Thaci, também se manifestou, dizendo que os 2 milhões de habitantes do seu país ficaram «orgulhosos» dos jogadores suíços: «Kosovo ama vocês».
A Sérvia como se conhece hoje surgiu em 2006, com a independência de Montenegro. Tem uma população estimada em 7 milhões de habitantes, de maioria cristã.
Hoje, é governada pelo presidente nacionalista Aleksandar Vučić, que vem realizando reformas no país, com cortes no setor público e privatização de estatais, rumo a uma possível integração com a União Europeia.
Na Copa, o país empatou com a Costa Rica em 1 a 1 e, após a derrota polêmica para a Suíça, chega para o confronto com o Brasil para o tudo ou nada.
O país avança para a próxima fase se ganhar da seleção brasileira. No caso de um empate, precisará contar com uma derrota dos suíços para os costa-riquenhos, já eliminados com duas derrotas nas primeiras rodadas.
É um cenário improvável, mas, após os últimos acontecimentos, classificar-se para a oitavas de final e ver os suíços, agora seus rivais mais do que nunca, eliminados seria uma dupla vitória para Sérvia.