A criação do Dia da Consciência Negra completa 50 anos em 2021. Em celebração a este marco, a Prefeitura de São Paulo organizou uma série de eventos, por meio da Secretaria Municipal de Cultura, incluindo shows gratuitos nos espaços culturais da cidade.
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Rico Dalasam, cantor e rapper, é um dos destaques da programação: se apresenta nesta sexta-feira (19), às 20h, no Centro de Culturas Negras - Mãe Sylvia de Oxalá (R. Arsênio Tavolieri, 45 - Jabaquara). Localizado na zona sul da capital paulista, o espaço também recebe neste mês shows de Jéssica Ellen (dia 21, às 17h), Orquestra de Berimbaus do Morro do Querosene (dia 28, às 15h) e Afoxé Filho de Omo Dada (dia 28, às 17h) - todos sem custo nenhum.
Dolores Dala Guardião do Alívio é o álbum mais recente de Rico Dalasam e guia a apresentação no CCN. Lançado em março de 2021, ele chega com inéditas quatro anos após o EP “Balanga Raba”, mas com uma sonoridade bem diferente. Agora mais popular, segundo ele mesmo, Dalasam dá uma pausa no pop que o alçou à fama, para expiar sua dor.
Alívio - como sintetiza o título do álbum. “Eu não estou lutando, eu estou acolhendo. Estou em um lugar que vou ficar por um bom tempo ainda, porque é o tempo da arte, mas também o tempo da minha vida nesse momento”, afirma.
A apresentação de Dalasam no Centro de Culturas Negras contará com um repertório especial. “Criei cenografia, figurino, tudo em 10 dias, que foi o tempo que recebi para isso. No repertório coloquei várias coisas: do disco em um bloco, músicas que eu estou ouvindo em outro e, pra finalizar, os raps”, diz o artista.
Além dos covers, o público pode esperar novidade. “Vai ter inéditas, eu tenho essa cultura de colocar músicas inéditas nos meus shows, que a gente possivelmente lance”, conta. Essa, inclusive, é sua maneira de criar canções.
“A gente já teve muitas experiências assim. Tem muita música que a gente nunca lançou e a galera tem no celular, tem vídeo no YouTube... Às vezes, a gente muda de ideia e percebe que aquele não era o momento daquela música ser lançada, mas a gente experimenta e busca por essa conexão com as pessoas”, explica.
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O Metro World News conversou com Rico Dalasam sobre DDGA e seu processo criativo. Confira:
Metro: Como está a expectativa para o show?
Rico: Recebi 10 dias para criar o show. Inventei cenografia, luz, figurino. No repertório, coloquei as coisas do disco, mas também coloquei várias coisas que é pra eu me divertir. As coisas que eu que eu ouço, que tenho escutado nos últimos tempos. Tem muitas músicas novas, que vão aparecer no próximo ano, aí vou experimentar algumas lá...
M: Então você vai levar inéditas para o show?
R: A gente já teve muitas experiências assim. Tem muita música que a gente nunca lançou e a galera tem no celular, tem vídeo no YouTube... Às vezes, a gente muda de ideia e percebe que aquele não era o momento daquela música ser lançada, mas a gente experimenta e busca por essa conexão com as pessoas
Acho que isso, inclusive, é um princípio de tudo que é feito em manifestação popular brasileira. As canções que tem uma relação com festa popular nasce primeiro do encontro, da festa que acontece no largo, em uma situação, em um batizado, em um Carnaval, em um refrão que nasce ali daquele style mesmo, daquele improviso. Eu acho que isso é o DNA da canção brasileira.
É pensar a música como um caractere do povo mesmo, antes da comercialização. O DDGA veio assim, o single lançado pelo nosso módulo no WhatsApp, depois veio o EP e só então envolvemos ele com outras canções. Eu me sinto mais em paz fazendo isso. Parece que é outro jeito, mas na verdade é só um reencontro nosso com o jeito das manifestações culturais brasileira acontecerem, mas no tempo do mercado.
M: Com um processo criativo tão atrelado ao presencial, palco, shows, a quarentena te fez sentir falta do público?
R: A gente foi dando um jeito de ter contato com as pessoas, via internet, durante esse um ano e pouco. Com “Braille” [faixa do álbum DDGA] a gente já tinha alguma experiência, pois veio veio antes do álbum, então era uma faixa que já tinha sua resposta dada, com o pessoal cantando junto, fazendo coro. Mas com as outras canções eu não sei. Segundo os números, as pessoas tem uma relação forte com “Expresso Sudamericah”, “Vividir”, “Estrangeiro”, “Mudou Como?”... Eu vou, pela primeira vez, ter que entender o que é estar ali, cara a cara com as pessoas, e fazer essa experiência juntos. Cantar juntos e ver que ordem de emoção é essa, né?
M: O seu show no CCN acontece em meio às comemorações de 50 anos do Dia da Consciência Negra. Você, como um homem negro e gay, consegue perceber avanço nas pautas sociais?
R: Eu acho que a gente é sempre atualizado, para o bem e para o mal. As coisas ruins se atualizam e se sofisticam. As coisas boas acham frestas pra acontecer e dar continuidade, nossos saberes sempre dão seu jeito de dar continuidade e chegar na geração seguinte, através da oralidade. Tem hora que está mais sombrio, tem hora que está mais iluminado e aí parece que a coisa avançou, desenvolveu, mas os interesses são os mesmos, a gente vai acabar se vendo em meio às demandas de um de um lugar, de um território, que está sempre muito comprometido em manter as estruturas coloniais, em todas as esferas. Ora a cultura respira, ora a cultura sufoca; ora os artistas dão voz de grito, ora as coisas caem... Eu percebo como algo muito mais cíclico que uma escalada de avanços.
O berçário de estrelas, no caso do Brasil, está no interiores, onde as coisas vão sempre se refazendo, se renovando, através das manifestações populares, dos movimentos embrionários - que depois se expandem para as capitais e todo o território. Isso é em tudo: seja um novo ritmo, seja o que for. E tudo isso, partindo sempre do pressuposto de que as coisas mais relevantes e mais contundentes da cultura e da identidade brasileira são geradas e produzidas pelo negro, desde sempre.
M: Você falou em ciclos. A arte consegue romper esse ciclo de opressão?
R: Na minha percepção, a arte tem sua própria via. Às vezes ela é a via principal, quando dá um axé, às vezes ela está na margem e segue o caminho.
Acho que é por aí que vai acontecendo, novas coisas nascendo, o jovem desenvolvendo linguagem e elas ganhando outras percepções, aí rebate na outra ponta da sociedade, que é a academia... E a gente vai entendendo, de tempo em tempo, como o povo se virou naquele momento, como ele reagiu aos acontecimentos.
M: Como é ser um artista que se posiciona?
R: Eu pago vários preços, né? É visível, talvez eu seja muito mais conhecido pelos preços que eu pago do que pela arte que eu produzo. O Brasil, às vezes, se comporta dessa maneira, ela é conhecida pela narrativa que ela defende e pelas coisas que ela aborda, mas não pelo som que ela faz. Isso acontece com artistas que são muito maiores que eu.
Como tudo é cíclico, tem horas que eu estou batendo mais nisso, mas tem horas que não. Agora eu estou Dolores Dala, eu estou do alívio! Eu não estou disputando nenhum imaginário de guerra, contratempo... Eu não estou lutando, eu estou acolhendo. Estou em um lugar que nos estrutura para avaliar as condições seguintes de enfrentamento, me permitindo estar bem do coração, da cabeça. É meio que essa batida agora! E vou durar nela por um bom tempo ainda, porque é música, o tempo da arte, mas também o tempo da minha vida, nesse momento, tá ligado?
M: É buscar alívio, ainda mais nesse momento do mundo. Foram meses bem pesados...
R: Sim, a gente vê a rua extremamente tensa, todo mundo tentando bater dois anos em dois meses... Eu estou trabalhando bastante, mas parece que existe um encurtamento de tempo, de compensação. Eu achei que eu também fosse embarcar nessa, mas eu vi que meu corpo não responde a isso.
M: O DDGA é um álbum de quarentena ou tudo veio antes?
R: Tinham canções que estavam sendo feitas antes, pois o EP veio antes. Eu acho que em nenhum momento eu coloquei a pandemia em pauta, nenhuma música foi feita com a cabeça nisso. Primeiro porque a gente ainda está entendendo o que aconteceu e tem muitas coisas a gente ainda vai entender. Não vi isso como substrato, pra que seja fonte de algo bom - na minha lógica de cancioneiro ou de rapper. Como a gente já tinha muita coisa feita, fomos visitando outras músicas.
M: DDGA está sendo bem recebido pela crítica. E pelo público?
R: É um disco que visita um lugar muito íntimo de todas as pessoas. Pretos, brancos, LGBTs, héteros... E acho que esse é o grande código do disco, porque no fim, mesmo com muitos pontos bem específicos, é sobre relacionamento, o que faz com que as pessoas tenham um entendimento múltiplo. Às vezes estou andando na cidade, no metrô, a pessoa está ouvindo o disco, indo para o trampo, e tudo isso mostra que ele teve uma penetração. E dessa vez, pela primeira vez nesses cinco anos que eu trabalho na música, é um disco que conseguiu fazer penetração em extremidades periféricas. Mesmo crescendo na periferia, meu som nunca bateu lá, sempre bateu nos centros, nas capitais, nas festas, em lugares que são majoritariamente brancos.
M: Você atribui isso a uma mudança na sonoridade ou nas letras?
R: O poema. Ele precisou ir para um lugar de encontro e não só de presença. Antes de “Braille”, o poema sempre foi daquela ideia de ocupar lugares. No “Orgunga”, no “Modo Diverso”, no “Balanga Raba”... Aí eu abri mão de ocupar todos os lugares, não sei se eu acredito mais nisso dessa forma, porque eu estou valorizando a ausência, a reflexão. [Antes eram] lugares que não dá para refletir com grave batendo na barriga, com escaladas do EDM. Eu adoro, mas não dava para fazer essa reflexão.
No DDGA, todas as claves balançam, mas você está tendo muito mais contato com a voz, com a palavra. E com eles atingimos nosso objetivo. E possivelmente tenhamos um segundo DDGA, de alguma maneira, em alguma outra linguagem, já pensando na ideia do avanço, da alta.
M: Então essa ruptura veio para ficar?
R: Ela mudou o poema, automaticamente mudou o som e agora ele me aproximou desse lugar do cancioneiro popular, do compositor. Isso me deu muito mais afinidade com lugares mais profundos do comportamento brasileiro. E eu consegui flertar com uma estética sonora de coisas que eu gosto de ouvir, com o que está batendo em Londres, em Lagos, para o centro da América...
Os resultados poéticos do DDGA vêm do pisero, do sertanejo, da sofrência. A versão popular brasileira simplificada da narrativa do DDGA são as músicas populares da margem do Brasil. Não estou me referindo ao cult, que o Sudeste dita, mas sim do popular brasileiro, da margem, da base, das estruturas do país - que é minha perspectiva de popular.
M: Essa influência vem da região onde você mora?
R: Meu bairro é uma pangeia de Brasil, com toda periferia de São Paulo. Só que acontece de outro jeito, porque quem vem, já vem deixando coisa no caminho. E essa é a a tristeza do poema. Quem vem de onde vem, já vem deixando as coisas no caminho e chega já desfalcado dos seus caracteres originais. Aí fica o espaço, que vira saudades, que vira alguma coisa.