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‘Ensinar o óbvio cansa’; trans contam como lidam com o preconceito mascarado por perguntas recorrentes

Neste sábado se comemora o Dia da Visibilidade Trans; desafios para essa população ainda são muitos, e caminho para mudança passa por empatia e oportunidade de emprego

Dia da Visibilidade Trans é celebrado neste sábado
Dia da Visibilidade Trans é celebrado neste sábado Katie Rainbow/Pexels (Divulgação)

Quem assiste a atual edição do Big Brother Brasil provavelmente acompanhou a discussão envolvendo o uso do pronome correto para se referir à participante Linn da Quebrada. Não adiantou ter a palavra “ela” literalmente tatuada na testa. Houve quem chegou a tratar à cantora e atriz no masculino - e passou vergonha, dentro e fora da casa.

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Infelizmente a situação enfrentada por Linn da Quebrada em rede nacional é bem comum na vida de travestis, mulheres e homens trans. Muitas vezes apoiadas na desculpa do “eu não sabia”, pessoas cis (termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o seu gênero de nascença) continuam agindo com preconceito e diminuindo quem lhes parece diferente. A violência é moral, mas pode chegar a ser física. Em 2021, foram registrados 140 assassinatos de pessoas trans no Brasil, segundo o Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021. O estudo foi realizado pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) com apoio de universidades como a Uerj (Estadual do Rio de Janeiro), Unifesp (Federal de São Paulo) e UFMG (Federal de Minas Gerais).

No Dia da Visibilidade Trans, celebrado neste sábado (29), é preciso lembrar que o discurso da ignorância abre brecha para uma série de questionamentos que não deveriam mais existir: o próprio uso do pronome, se a pessoa passou por cirurgia de redesignação sexual ou mesmo qual é o nome “verdadeiro”, querendo se referir ao nome que consta na primeira certidão de nascimento.

“Hoje em dia quase todas essas perguntas me irritam. Não sou professora. Ensinar o óbvio cansa”, desabafa Renata Peron, 44 anos, mulher trans, assistente social e, como ela se designa, “artivista”, união entre artista e ativista.

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Segundo ela, quem realmente está interessado em se inteirar sobre diversidade conta hoje com diversas ferramentas de pesquisa. Muitos dos que dizem “querer saber”, na verdade, estão tentando criar uma imagem de alguém desconstruído quando, no fundo, a realidade não é bem essa. “Hoje se você sai à caça de qualquer coisa, basta um Google. Por que não perder um tempo então para pesquisar um pouco sobre o universo trans?”, questiona. “Se a pessoa cis tem boa vontade, há disponível uma série de bons materiais. Agora, eu não sou obrigada a ensinar quem não quer aprender, quem só quer ‘ficar bem na fita’. É uma hipocrisia, já que as pessoas trans que esses tais indivíduos querem tanto ‘conhecer e entender’ estão lá nas esquinas, aguardando por eles, em busca de sobrevivência”, completa Renata.

“Se uma pergunta vem de alguém que eu conheço, do meu convívio, tudo bem. Agora se vem que quem eu nunca vi e quer apenas satirizar, tudo muda”, diz Mihani de Freitas, 44 anos, trans e técnica de enfermagem de formação.

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Ela conta que, por muitos anos, sua própria família a chamou de “ele”. A aceitação demorou a vir e, hoje me dia, essas “confusões” por parte de algumas pessoas não a incomoda tanto. Há momentos, porém, em que lidar com a situação é mais penoso. “Se eu estou em um dia bom, eu relevo e não estou nem aí. Mas se é um dia em que estou com o astral em baixa, isso tem o poder de me derrubar mais ainda”, conta.

Para Mihani, a participação de Linn da Quebrada no reality global é extremamente necessária. Não é, entretanto, a primeira vez que alguém trans entra no programa. Anos atrás, o Brasil conheceu a maquiadora Ariadna Arantes. “A diferença é que a Ariadna tinha o que chamamos de passabilidade. Já a Linn tem traços mais masculinos e é importante mostrar para todos que, apesar do seu visual, ela quer ser tratada no feminino.

Para esclarecer de uma vez por todas

Ser trans - ou transexual - é quando não há conformidade de gênero, ou seja, quando o gênero designado não condiz com a maneira como a pessoa se identifica.

Há diferença entre uma travesti e uma mulher trans. A travesti nem sempre se identifica de uma forma binária. Ela não é homem e não necessariamente é uma mulher. Ela é travesti, como bem explicou Linn da Quebrada no BBB. Já a mulher trans se reconhece como mulher na sociedade. E para ser uma mulher trans não é preciso passar por cirurgia de redesignação de sexo.

Vale dizer que não se deve confundir identidade de gênero com orientação sexual. A primeira diz respeito a como a pessoa se sente. Já a segunda vai definir a busca por relacionamentos afetivos e sexuais.

Empatia, a palavra de ordem

Empatia é chave contra a transfobia
Empatia é chave contra a transfobia Freepik (Divulgação)

Fato é que grande parte das pessoas heteronormativas, de fato, ainda tem dúvidas sobre o movimento LGBTQIA+. Buscar conhecimento é preciso mas, antes mesmo dele, deve-se treinar a empatia.

“Acredito que perguntas podem ser feitas quando há o interesse real em aprender. A ignorância ainda é muito grande, mas o bom senso deve prevalecer. Perguntar se uma pessoa é operada, por exemplo, faz sentido se quem quer saber é um médico, durante uma consulta. Pense o seguinte: ninguém chega para uma pessa cis na rua e pergunta se ela fez alguma cirurgia genital”, esclarece Márcia Rocha, a primeira advogada transexual a ter o direito de usar o nome social na carteirinha da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Hoje Márcia integra a Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero do órgão em São Paulo. Além disso, é empresária, cofundadora e coordenadora do Projeto Transempregos, pós-graduada em Educação Sexual e tem um assento no Comitê de Direitos Sexuais da Associação Mundial para a Saúde Sexual.

Para a advogada, o problema social em torno da questão mora ignorância “assumida e defendida”, como ela chama. Ao longo da vida, ela já enfrentou diversos episódios incômodos, mas hoje a resposta a eles vem na consciência de seus direitos como cidadã. “´É uma grande violência quando você está em uma fila, por exemplo, e te chamam pelo nome masculino bem alto só para te constranger. Sei dos meus direitos e as demais pessoas trans também precisam saber. Reunir provas para um eventual processo é uma ferramenta. Quase todas as cidades de São Paulo contam com comissões de diversidade na OAB. Por isso, busque orientação”, aconselha.

Empregabilidade como saída

Boa parte das dúvidas e do preconceito que cercam as pessoas trans se deve à marginalização. A exclusão é uma velha conhecida desse grupo, começando pela família e indo parar no mercado de trabalho.

Oferecer oportunidades para mulheres e homens trans é o melhor jeito de modificar tanto a vida dessas pessoas como a visão geral. Esta é, inclusive, a proposta do Transempregos, plataforma voltada à inclusão profissional desse grupo. “O projeto é uma ferramenta para tentar mudar a sociedade. A partir do momento em que as pessoas trans mostram suas competências e sua dignidade, a cabeça dos demais vai mudando”, afirma a cofundadora Márcia.

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Mercado de trabalho ainda se fecha para as pessoas trans, mas iniciativas buscam mudança Pixabay (Divulgação)

Para a advogada, a falta de empregabilidade é, na verdade, a consequência de todo o problema instaurado. “A sociedade não vê o trans como um ser humano, que pode trabalhar, pagar seus impostos e ter uma família”, analisa.

O Transemprego existe há oito anos e já conta com 1.500 empresas parceiras. Apenas em 2021, 797 pessoas trans foram contratadas.

Iniciativas como essa enchem o coração de esperança, mas o caminho ainda é longo. Mihani, por exemplo, do início desta reportagem, nunca conseguiu ingressar no mercado da enfermagem. “Desisti de procurar emprego na minha área”, afirma.

A “artivista” Renata alerta, nesse contexto, para o perigo das empresas que se dizem “amigas de diversidade”. “Não é raro encontrar empresas que têm 600 funcionários e separam duas vagas para travestis. E ainda querem um prêmio por isso. Se a empresa deseja mesmo incluir, tem que investir em programas sérios. A realidade é que hoje uma em cada 10 trans consegue um emprego miserável. As outras estão nas ruas, fazendo sexo para poder comer.”

Fica a dica

Nesse Dia da Visibilidade Trans, o desejo de Renata para o futuro é que o movimento possa cada vez mais buscar informações para reivindicar direitos. “Tudo começa sabendo eleger quem nos representa. Não existe outro caminho na política que não seja pela própria política. Precisamos de leis e programas de inclusão social para que possamos chegar a um lugar de empoderamento”, diz.

Márcia lembra que a diversidade só traz benefícios para todas as partes e, por isso, faz dois apelos. “População trans, não desista, erga a cabeça e lute. População em geral, se informe, tente entender que ser trans não é uma escolha, nem coisa do demônio e sim uma característica humana que sempre existiu. Acolher é bom para todo mundo.”

Mihani, por sua vez, lembra que, no fim das contas, todos somos iguais e deixa um recado: “me respeite como trans, me respeite como ser humano, como gay, porque é tudo o que sou. E se eu me cortar na sua frente, meu sangue não será azul. Será vermelho, igual ao seu”, finaliza.

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