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Pós-pandemia: Para filósofo, saúde e educação públicas serão mais valorizadas no futuro

Para o doutor em filosofia e presidente por duas vezes da Anpof (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) Marcelo Carvalho, o novo coronavírus está expondo a nossa solidariedade e o nosso egoísmo e deverá transformar a sociedade. Em entrevista ao Metro Jornal o professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) disse que a pandemia deverá valorizar o debate sobre a saúde e a educação públicas, ainda que agora esteja provocando mais divisão do que união.

Como vê o comportamento do brasileiro na pandemia?
A novidade está em dois aspectos principais. O primeiro é trazer a possibilidade da morte para o cotidiano de todos. O outro é o distanciamento social, que é necessário, mas envolve o absurdo de nos separar das pessoas. Isso traz uma grande restruturação dos sentimentos. O comportamento do brasileiro veio depois do que assistimos em outros países e foi marcado por uma ansiedade muito forte. A pandemia, principalmente nas primeiras semanas, provocou uma experiência de vida em sociedade, sobre o quanto estamos interligados. Eu lamento muito pela maneira como alguns governos lidaram com isso e fizeram a gente caminhar para um contexto em que vivemos o isolamento, a doença e o luto em conflito social. Ao invés de nos unir, em determinado momento, essa experiência claramente dividiu a sociedade. Isso não precisa ser assim. Chegamos ao absurdo de que afirmar o luto ou se compadecer pelo outro virou uma atitude situada na arena política, de ser contra ou a favor disso ou daquilo.

Há uma preocupação maior com o próximo, de abrirmos mão da nossa liberdade pela comunidade. Como tem visto esses conceitos?
De um lado, sim, surgiu a preocupação de não sermos vetores e de cuidarmos dos mais vulneráveis, mas isso veio acompanhado de um medo individual muito grande e do aumento da cobrança pela solidariedade. Mas essa mesma situação também explicitou um egoísmo. Uma parte do discurso contra a quarentena e pela reabertura se apresenta de maneira irresponsável, algo como: ‘eu não tenho medo e não quero ser prejudicado por isso’.

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A solidariedade e o egoísmo que coexistem agora podem virar um aprendizado?
Transformados nós seremos, inevitavelmente: na maneira como lidamos com as coisas básicas do dia a dia, com as outras pessoas e com a morte. Mas não sou necessariamente otimista de supor que a pandemia veio alterar a natureza humana ou fazer com que, enquanto sociedade, sejamos melhores. Acho que isso é possível e o inverso, também. O Brasil não tem vivido a experiência de perder vidas de maneira solidária. Temos uma sociedade que alimenta cotidianamente o conflito e que trouxe posições da política para dentro da discussão da ciência. Isso mostra o quanto a experiência da doença não nos leva necessariamente a superar as diferenças. As mais duras divergências e contraposições estão sendo replicadas no debate do novo coronavírus.

O adulto de hoje parece convencido, pelo avanço da medicina e por hábitos saudáveis, de que é possível ‘esticar’ a vida. A covid-19 tem mostrado que somos muito vulneráveis. A percepção da finitude será impactada?
De maneira geral, a gente vive hoje a sensação de que a vida será razoavelmente longa. É diferente de gerações não muito distantes, em que a morte jovem era mais comum. Isso vai mudar para todo mundo. A gente viveu algo de maneira mais coletiva no início da quarentena – mas que sobra um pouco como experiência dela –, que é a sensação de que é necessário se voltar para o essencial e descobrir o que é mais importante para a vida, relativizando o valor das outras coisas. O primeiro susto da quarentena levou à isso de maneira mais forte.

O olhar para o essencial tem feito a gente entender a razão de coisas simples, como lavar as mãos e ligar mais vezes para os nossos pais.
Quem está nas cidades mais transformadas pela pandemia está sendo levado à uma vida mais vinculada ao que é estritamente necessário e básico. O distanciamento também provoca a revalorização das relações, a redescoberta da importância da convivência. Isso talvez não seja um valor para todos no final, mas não são poucas as pessoas que têm reencontrado esses elementos simples, como descobrir a quitanda do bairro. As lojas fechadas nos obrigam a fazer compras virtuais, que trazem uma facilidade, mas mostram um paradoxo: eu consigo encomendar algo de lugares distantes, mas tenho dificuldade de encontrar na internet a loja da esquina, onde eu queria comprar. Eu posso mover uma economia longe de mim, mas não sou capaz de lidar com a que está ao meu lado. Essa experiência da pandemia também está fazendo a gente reencontrar uma vida de comunidade.

A covid-19 surgiu quando parte do mundo buscava acelerar a privatização do bem público, mas a crise reforçou a importância de termos serviços fortes. Acredita que essa redução do papel do estado será revista?
O seu argumento tem razão na questão dos serviços básicos que o estado presta, saúde e educação, sobretudo. Havia um debate efetivo sobre privatização da saúde, mas o SUS (Sistema Único de Saúde) é hoje a grande arma que o Brasil tem para combater a pandemia. Sem esse serviço, os dados seriam incomparavelmente mais trágicos. Isso mostra o quanto a prestação de saúde pelo estado é fundamental e não pode ser perdida, com todos os problemas que o SUS tem. Mas não acho que isso vale de maneira geral para o papel do estado. A origem da crise de 2008 era o funcionamento de uma economia de mercado desregulada, sem supervisão do estado. Veio a crise, e como se resolveu? O estado teve que fazer uma interferência brutal e colocar dinheiro. A leitura era de que apareceu a necessidade de o estado estabelecer limites, já que se a gente solta o mercado sozinho ele gera absurdos. Mas não foi esse o aprendizado. Passou o ciclo da crise e se retomou a agenda liberal mais radical, de eliminação do estado e de abordagem do gasto público como sendo um mal. Não acho que será diferente agora, exceto para a saúde pública. Retomar no futuro o exemplo do que estamos vivendo hoje será uma maneira convincente de defendê-la.

E na educação?
Há duas décadas vemos um processo lento de introdução da tecnologia. Via de regra, é um meio adicional de propor atividades, mas a aula é a aula: com professor e alunos na sala. O isolamento nos jogou instantaneamente para a situação inversa, de não ter sala disponível. Todas as escolas foram obrigadas a procurar alternativas, mas esse ensino a distância tem funcionado de maneira precária. Por isso, a fantasia de uma escola de qualidade que se opera a distância será engavetada. Teremos discussão mais madura porque deixamos para trás o delírio de que a tecnologia pode substituir os meios mais tradicionais na educação. Há coisas que podemos fazer com a tecnologia sim, mas estamos entendendo a necessidade central de se valorizar o espaço da escola.

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