Foco

O dia em que a Suécia acordou com o trânsito “virado do avesso”

Em 1967, o país nórdico inverteu a mão do trânsito em todo território nacional, em uma operação ousada e bem-sucedida.

«Emocionante» é a palavra mais usada por Jan Ramqvist, de 77 anos, para descrever a sensação de participar da missão que mudou a rotina de motoristas e ciclistas suecos em todo o país: começar a dirigir, pela primeira vez, no lado direito da pista.

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«Só se falava nisso, mas nós realmente não sabíamos se daria certo», diz.

Ramqvist era um engenheiro de tráfego recém-formado, de 26 anos, na cidade de Malmö, quando a polêmica mudança de mão foi implementada, em 3 de setembro de 1967.

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A data é oficialmente conhecida como Högertrafikomläggningen (desvio do tráfego para a direita, em tradução livre) ou simplesmente Dagen H (Dia-H).

A missão de Ramqvist e seus colegas era ajudar a colocar a Suécia na mesma «direção» que seus vizinhos europeus – a maioria havia seguido a tendência mundial de dirigir carros à direita.

Além de melhorar a reputação internacional do país, o governo sueco estava cada vez mais preocupado com a segurança.

O número de veículos registrados nas estradas havia disparado de 862.992 na década anterior para 1.976.248 na época do Dagen H, segundo a Statistics Sweden. A população do país era de cerca de 7,8 milhões.

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Apesar de seguirem a mão inglesa, muitos suecos já possuíam carros com o volante no lado esquerdo, próprios para a direção pela direita – fossem comprados no exterior ou mesmo dos principais fabricantes de carros suecos, como a Volvo, que escolheram seguir a tendência.

Mas acreditava-se que essa fosse uma das causas do aumento no número de acidentes de trânsito fatais – de 595 em 1950 para 1.313 em 1966 -, juntamente à ocorrência frequente de colisões nas fronteiras da Suécia com a Dinamarca, Noruega e Finlândia.

«O mercado de carros na Suécia não era tão grande e costumávamos comprar carros com volante à esquerda», explica Lars Magnusson, professor de história econômica da Universidade de Uppsala, na Suécia.

«Mas isso significava que você estaria sentado do lado oposto do que fazia sentido.»

‘Incrivelmente difícil’

No período que antecedeu o Dagen H, cada município teve de lidar com diversas questões – desde repintar as marcações nas estradas até realocar sinais de trânsito e pontos de ônibus.

Várias cidades, incluindo Estocolmo, Malmö e Helsingborg, aproveitaram a mudança para implementar alterações de transporte mais amplas, como o fechamento de linhas de bonde para proporcionar mais rotas de ônibus.

Centenas de novos ônibus foram comprados por municípios em todo o país, e cerca de 8 mil foram reformados para oferecer portas de ambos os lados.

Cerca de 360 mil placas de trânsito tiveram de ser trocadas em todo o país, o que foi feito em um único dia antes da inversão da mão.

Funcionários municipais e militares trabalharam juntos até tarde da noite para garantir que a tarefa fosse cumprida antes do Dagen H, um domingo. Para isso, todo o tráfego, exceto o essencial, foi interditado nas estradas.

«Eu trabalhei incrivelmente duro naquela noite», lembra Ramqvist, que compartilhou a responsabilidade de garantir que cerca de 3 mil placas fossem trocadas corretamente em Malmö.

«Meu chefe ficou muito orgulhoso porque fomos um dos primeiros (municípios) a ligar para Estocolmo e avisar ao chefe da comissão que tínhamos acabado», conta, relembrando o clima de comemoração.

«Comemos bolo e tomamos café no meio da noite!»

Planejamento de guerra

Outros se recordam claramente do estresse do projeto.

«O mais desafiador era a falta de tempo, sem tirar férias, trabalhando muitas horas por dia durante meses, quase me suicidei», diz Arthur Olin, agora com 82 anos, que trabalhava como consultor de trânsito na cidade de Helsingborg.

Ele conta que passou um ano inteiro concentrado no planejamento logístico.

O estresse levou Olin a «socar a parede» um ano depois.

«Eu tive que ir para a África por duas semanas apenas para cortar todos os laços com o trabalho – recomendações expressas do médico.»

Uma nova era

Mas, quando o Dagen H finalmente chegou, o trabalho árduo parecia ter valido a pena. Os suecos começaram a dirigir com cautela do lado direito das estradas de todo o país, precisamente às 5h da manhã de 3 de setembro de 1967, após uma contagem regressiva no rádio.

Olof Palme, o ministro sueco da Comunicação (que mais tarde se tornou primeiro-ministro), entrou no ar para dizer que o movimento representava «uma mudança muito grande em nossa existência diária, em nossa vida cotidiana».

«Eu ouso dizer que nunca antes um país investiu tanto trabalho pessoal e dinheiro para alcançar uniformidade com as regras de tráfego internacional», anunciou.

No total, o projeto custou o equivalente a cerca de 2,6 bilhões de coroas suecas (US$ 316 milhões) em valores atuais.

Mas o historiador econômico Lars Magnusson argumenta que esse valor é relativamente baixo, dada a escala do plano – o maior projeto de infraestrutura que a Suécia já viu.

Para efeito de comparação, basta olhar o orçamento total de 2017 concedido à Administração Sueca de Transportes (agência do governo responsável pelo planejamento de transportes) para estradas e ferrovias – cerca de 25 bilhões de coroas suecas (US$ 2,97 bilhões).

«[O Dagen H] foi de certo modo uma transferência razoavelmente barata – não era uma quantia muito alta mesmo naquela época», explica.

Isso, segundo ele, se deve em parte às autoridades suecas fazerem jus a sua reputação global de eficiência e planejamento cuidadoso, junto à logística da época.

«O sistema rodoviário não era tão desenvolvido como hoje e, portanto, os custos em infraestrutura não eram extremamente altos, e também porque já tínhamos os carros com volante à esquerda», diz.

Crise evitada

Em termos de segurança, o projeto foi declarado um sucesso quase imediatamente.

À medida que os suecos iniciavam sua semana de trabalho, no dia seguinte ao Dagen H, 157 acidentes de trânsito de pequeno porte foram registrados em todo o país, um pouco abaixo da média de uma segunda-feira típica. Ninguém morreu nos acidentes.

Peter Kronborg, consultor de trânsito em Estocolmo e autor do livro Håll dig henger Svensson (Mantenha-se à direita, Svensson, em tradução livre), tinha 10 anos no dia da mudança e se lembra de andar de bicicleta pela primeira vez do lado direito da estrada, assim como do burburinho causado pela imprensa internacional, que estava na capital sueca para cobrir os eventos do dia.

«Foi a coisa mais importante que aconteceu na Suécia em 1967», diz ele.

«Os jornalistas – especialmente os caras da BBC – estavam esperando um banho de sangue, um grande número de acidentes. Eles ficaram um pouco desapontados. Pelo menos é o que eu li.»

No total, 1.077 pessoas morreram em acidentes e 21.001 ficaram feridas em 1967, ano do Dagen H, menos que em 1965, quando foram registrados 1.313 mortos e 23.618 feridos.

Isso se deve em grande parte à cautela extra adotada pelos suecos após a transição e à campanha nacional promovida pelo Estado.

Levou mais três anos até que as taxas de acidentes e mortes retornassem aos seus níveis originais, período em que o número de carros continuou a aumentar rapidamente em todo o país.

Auto-escola

O investimento em planejamento e logística necessários para preparar as estradas ajudou claramente a evitar a confusão entre os motoristas.

Mas grande parte do orçamento do governo para o Dagen H também foi gasto em iniciativas de comunicação destinadas a educar os suecos sobre a mudança.

Na teoria, não parecia fácil: em um referendo realizado em 1955, 83% da população tinha sido contra a alteração.

A campanha educativa contemplava anúncios de televisão, rádio e jornais, além de palestras nas escolas. O Dagen H tinha seu próprio logotipo, estampado em outdoors, ônibus e caixas de leite.

Houve até um concurso para selecionar uma trilha sonora para a mudança – a música Håll dig till höger Svensson (título do livro de Peter Kronborg) foi selecionada em uma votação nacional, chegando ao top cinco da parada de sucessos sueca.

Enquanto isso, a televisão estatal contratou celebridades globais para aparecer em seus programas mais populares, projetados para atrair grandes audiências, que seriam informadas sobre o Dagen H.

«Os políticos perceberam que não era suficiente ter um programa educativo, precisavam de uma campanha publicitária», ri Kronborg. «A ambição não era atingir 99%, mas 100%.»

Ao mesmo tempo, Lars Magnusson acrescenta que a «cultura do conformismo» e a confiança nas autoridades da época prevaleceram, ajudando a possibilitar a mudança da opinião pública.

«Naquela época, a imprensa era menos crítica e estava relatando o que diziam os especialistas. Se os especialistas afirmassem que não seria muito caro e que beneficiaria a todos, suponho que a mídia aceitaria e que o público aceitaria também.»

Lições futuras

A Suécia conseguiria fazer algo parecido com o Dagen H hoje?

Recentemente, o país ficou em primeiro lugar na Europa no ranking de inovação global da agência Bloomberg. Conta com uma infraestrutura de transporte acima da média da União Europeia e é uma das economias digitais mais fortes da região.

Com essas credenciais, a nação nórdica certamente sairia na frente se decidisse embarcar em um projeto de transporte igualmente transformador.

Mas o sentimento predominante entre aqueles que estudaram o Dagen H de perto é que o clima político, econômico e midiático de hoje apresenta inúmeros novos desafios frente àqueles que existiam na época do Dagen H.

O principal argumento de Peter Kronborg é que o governo teria dificuldade de mudar a opinião pública e moldar um novo consenso de forma tão expressiva.

Segundo ele, um ano depois do Dagen H, «a sociedade sueca se tornou um pouco mais individualista», na esteira do radicalismo estudantil e do movimento de contracultura em toda a Europa.

Além disso, ele acredita que a mídia atual – marcada pela ascensão do YouTube e do Netflix, em meio à morte do «horário nobre de televisão» – tornaria «muito mais complicado» para políticos e ativistas alcançarem toda a população.

Na época do Dagen H, havia apenas um canal de televisão e de rádio, que «todo mundo assistia e ouvia».

Do ponto de vista econômico, Lars Magnusson estima que o custo financeiro da implementação do Dagen H hoje seria muito maior, devido às redes rodoviárias e à infraestrutura da Suécia estarem «muito mais desenvolvidas» do que há 50 anos.

«É difícil fazer uma estimativa exata, mas eu diria que aumentaria em pelo menos 10 vezes. Este é o meu palpite», diz ele.

Mesmo os atuais estrategistas de transporte da Suécia são céticos em relação a implementar nos dias de hoje algo equivalente ao Dagen H, da forma tranquila como foi em 1967, em qualquer lugar.

«Minha opinião pessoal é que seria muito difícil», diz Mattias Lundberg, chefe de planejamento de tráfego da cidade de Estocolmo.

«Naquela época, uma meia dúzia, normalmente homens, tinha realmente muito poder para influenciar as coisas em uma escala tão ampla. Hoje, a sociedade é muito mais diversificada.»

Mas ele observa que o Dagen H é um evento grandioso, que ajudou a incentivar um foco contínuo na segurança das estradas, tanto no discurso público quanto político.

Em 1997, a Suécia iniciou o que se tornou um projeto multinacional para zerar o número de mortes em rodovias, conhecido como «Vision Zero».

Atualmente, o país tem uma das taxas mais baixas de mortes no trânsito do mundo – 270 pessoas morreram em 2016, em comparação com 1.313 em 1966, um ano antes do Dagen H.

Hoje em dia, no entanto, grande parte do trabalho realizado pela equipe de Lundberg se refere ao planejamento de um futuro em que cada vez menos suecos peguem no volante.

A atual estratégia da capital sueca tem como foco a sustentabilidade, que prioriza a caminhada, o ciclismo e o transporte público.

Os primeiros ônibus autônomos do país foram lançados em janeiro, em Estocolmo, e as autoridades já começam a analisar o que pode ser a mais significativa mudança no sistema de transporte do país desde o Dagen H: a chegada de carros sem motoristas.

Lundberg argumenta, no entanto, que qualquer mudança drástica ainda está «muito longe de acontecer» e que – diferentemente do Dagen H – vai definitivamente seguir um período de consulta pública pesada.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Capital.

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