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Após quase dois anos da tragédia de Mariana, sinais de destruição ainda são nítidos

Antes sinônimo de fartura, rio Doce sofre com a falta de água e os impactos causados pelo maior desastre socioambiental do país

No rio que já foi sinônimo de abundância, as cercas afastam animais com sede. No rio que já foi sinônimo de esperança, comunidades inteiras sofrem com as marcas do minério e a água imprópria para qualquer atividade. No rio que já foi sinônimo de subsistência, barcos de pescadores apodrecem pela falta de uso. Tomado pelos rejeitos da Samarco, o curso d’água que era Doce agoniza e pede socorro. E os sinais de destruição ainda são nítidos. Já os de recuperação, quase impossíveis de se notar.

Na segunda reportagem sobre os dois anos do rompimento da barragem de Fundão em Mariana (MG), o Metro Jornal traz um panorama sobre a situação da bacia. “Um dia esse rio vai chorar sangue”, profetizava o pai de Shirley Krenak, preocupado com o impacto ambiental causado pelas indústrias e a mineração próximas ao leito sagrado. Na região que já deu nome a uma das maiores empresas do setor no mundo, a sensação é de abandono e falta de justiça. “A essência do rio foi morta. O que deixava ele vivo eram as criaturas que dele sobreviviam. É impróprio para tudo. As nossas caças desapareceram, os poucos peixes que restaram estão com feridas por toda a parte”, contou a índia, que desde a tragédia não consegue ir até lá. “Não é fácil, foi nesse rio que aprendi a nadar e sobreviver”, conta.

Em Governador Valadares, maior cidade da bacia, a água que chega às torneiras ainda é vista com desconfiança pela população. “É uma tristeza. Nunca mais usei. Tenho que comprar água mineral para beber e cozinhar. Para os comerciantes, virou o carro chefe das vendas”, comentou Celina Araújo. Os prejuízos não são apenas financeiros: até manchas vermelhas começaram a aparecer na pele da estudante Mariana Xavier. “Elas coçavam muito, mas não tem outro jeito. É a água que temos”. O diretor-geral da companhia de abastecimento do município, Alcyr Nascimento Júnior, garante que a água é boa. “Ela é monitorada e testada todos os dias. Utilizamos um produto que já era usado no período chuvoso para estabilizar a água. Todos os funcionários daqui fazem uso dela”, explicou. Mas para “tranquilizar” a população, a prefeitura vai inaugurar uma nova fonte de captação.

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‘Tudo que se planta, não dá’

Mandioca, feijão, milho e até abóbora. Em sua pequena propriedade em Ipaba, no Vale do Aço, Sebastião Nascimento, conhecido na região como Tiãozinho, vendia nas feiras os alimentos que cultivava perto do Rio Doce. Mas há dois anos, na terra “onde tudo que se plantava, dava”, nem um grão nasce mais. “Ela é dura, perdeu todo o abudo. Não tem mais água para plantar e com essa seca a situação está pior. Os caminhões só abastecem duas vezes por semana”.

Para o ambientalista Ernesto Galiotto,  a recuperação do leito pode levar séculos. “O rio já vinha sofrendo agressões há muitos anos e os peixes estavam contaminados com mercúrio. Esse crime ambiental foi o fim. Aquele resíduo que se depositou no fundo vai ser uma praga que levará talvez séculos para sumir”, explicou. E o desmatamento das margens também pesa nessa balança. “Praticamente não existem grandes áreas verdes. Ainda tem a poluição das indústrias. É cada água densa que cai diretamente”, disse.

A diretora da Fundação Renova, Andrea Azevedo, enfatizou que um plano de manejo do Rio Doce foi aprovado recentemente pelo Ibama e deve ser executado em até três anos. Informou ainda investimentos de R$ 32 milhões no abastecimento de Governador Valadares. Questionada sobre os efeitos da seca prolongada para os produtores rurais,  disse que a Renova fornece 140 mil litros de água por dia para as propriedades, por meio de caminhão-pipa.

Pescadores sofrem sem os peixes

Os barcos de Regência, em Linhares, não saem mais para o mar para garantir o sustento de quem passou décadas vivendo da pesca. Desde o desastre do Rio Doce, a atividade está proibida, o que impactou diretamente na vida dos moradores.

Um dos pescadores mais experientes de Regência, José de Sabino, 53, tinha renda mensal de R$ 6 mil, o que o permitia manter dois filhos na universidade. Agora, recebendo apenas o auxílio da Samarco, de R$ 1,3 mil, não pode mais pagar os cursos. “Tinha o maior orgulho em ter meus filhos na faculdade. Agora não consigo mais pagar e eles tiveram de interromper os estudos”, afirma.

Segundo a Associação Comercial de Regência, mais de 30% dos pescadores, comerciantes e donos de pousadas que tiveram suas atividades prejudicadas pelo desastre não estão recebendo o benefício porque não conseguiram atender as exigências do cadastro.

No Espírito Santo, água muda cidades

Duas semanas depois do rompimento da barragem da Samarco, foram as águas do rio Doce no Espírito Santo que começaram a mudar de cor. Logo em seguida, o mar de Regência, norte de Linhares, estava contaminado pelos rejeitos da barragem. Um caminho que mudou a realidade de moradores de Colatina, Fundão, Regência e Marilândia.

Em Colatina, até hoje os moradores sentem um certo receio de consumir a água captada do rio Doce. Situação agravada pela seca, que afeta o município.

Estudo feito por pesquisadores da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), durante sete expedições realizadas à foz do rio a partir da chegada da lama no litoral capixaba, aponta que ainda existe muito material oriundo da queda das barragens na calha do rio, o que significa que em épocas de chuva deve ocorrer o aumento da presença desses materiais nas análises.

Segundo a Fundação Renova, a presença de metais nas análises da água bruta está de acordo com o padrão dos resultados que eram obtidos na bacia antes da passagem dos rejeitos. Isso significa que a água pode ser retirada do rio para que seja devidamente tratada antes da distribuição pela rede de abastecimento.

Em agosto foi iniciado um monitoramento automático por meio de 22 novas estações. Os dados são coletados também em 56 pontos ao longo do rio Doce e em 36 da zona costeira.  

 

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