Um urbanismo denso, com edifícios sofisticados, malha viária eficiente e organização espacial planejada.
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De acordo com novo e abrangente estudo arqueológico realizado na Guatemala, a civilização maia, uma das mais proeminentes culturas pré-colombianas do continente americano, experimentou um auge civilizatório com notório e complexo patamar de construção de cidades.
Os dados, publicados na edição de quinta-feira da revista Science, trazem um panorama até então inédito de uma coleção de resquícios arqueológicos cobertos por floresta tropical no norte da Guatemala, na América Central.
O estudo é resultado de um consórcio de 18 pesquisadores de instituições norte-americanas, europeias e guatemaltecas, em uma iniciativa denominada Patrimônio Cultural e Natural Maia (Pacunam).
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Desde 2016 os cientistas vinham analisando uma área de 2,1 mil quilômetros quadrados na Reserva Biosfera Maia, no Departamento de Peten, na Guatemala.
Para tanto, eles utilizaram mapas gerados por uma tecnologia chamada LiDAR (da sigla em inglês Light Detection and Ranging, ou seja, detecção e medição com luz). A técnica de mapeamento a laser revelou mais de 60 mil construções.
É o mais amplo estudo já realizado até hoje na arqueologia mesoamericana. Como o mapeamento topográfico permite «ver» o que há por baixo da floresta, o material sugere «uma reavaliação da demografia, da agricultura e da política dos maias», conforme noticia a Science.
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Sofisticação
«A mais surpreendente conclusão a que chegamos foi a magnitude e a densidade de algumas cidades maias. Ainda existem teorias que classificam as cidades maias como de baixa densidade. Estes dados claramente demonstram que tais teorias estão equivocadas», afirmou à BBC News Brasil o arqueólogo ítalo-guatemalteco Francisco Estrada-Belli, pesquisador da Universidade Tulane, dos Estados Unidos, e autor de, entre outros livros, The First Maya Civilization: Ritual and Power Before the Classic Period.
«Ressalto também que a escala e a onipresença das construções, bem como a manipulação realizada por eles na paisagem natural, são surpreendentes», comentou à reportagem o antropólogo norte-americnao Marcello Canuto, professor de estudos latino-americanos da Universidade Tulane.
«Estas informações nos ajudam a entender como eram altos o nível de trabalho e a interdependência socioeconômica na sociedade maia.»
Estrada-Belli acredita que tais informações podem contribuir para se valorizar melhor a cultura e a civilização dos maias – povo que viveu seu auge entre os anos de 250 e 950 e estava praticamente colapsado quando a América foi conquistada pelos europeus, a partir de 1492.
«O estudo fornece uma grande quantidade de dados sobre a forma de urbanismo e agricultura praticada pelos maias. Portanto, as teorias sobre esses elementos fundamentais agora podem ser reavaliadas a partir de uma base mais sólida», diz o arqueólogo.
O antropólogo Canuto complementa, lembrando que com tais dados à mão, agora se pode melhor realizar análises comparativas entre a civilização maia e outras culturas ancestrais ao redor do mundo.
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O mapeamento a laser identificou mais de 61.480 construções antigas escondidas em meios às densas florestas tropicais do norte da Guatemala. Após extensa análise, os cientistas envolvidos no estudo puderam reconhecer edificações urbanas, estruturas rurais e redes de transporte.
No total, 12 áreas independentes – ou 12 conjuntos de resquícios arqueológicos – foram estudados, todos na mesma região.
Os dados permitem inferir que mais de 11 milhões de habitantes viveram na região entre os anos de 650 e 800, o chamado Período Clássico Tardio. Uma densidade populacional de 100 habitantes por quilômetro quadrado – para efeitos de comparação, a densidade demográfica do Estado de São Paulo, por exemplo, é de 166 pessoas por quilômetro quadrado.
Uma população de tal escala exigiria agricultura praticada de forma intensiva – o que, até então, não era algo apontado como existente na região. Conforme enfatizam os cientistas, esta seria a única maneira de sustentar tanta gente em uma área de tais dimensões.
As imagens confirmam a hipótese. Há indícios de que grande parte do solo da região tenha sido fortemente modificado, justamente pelas práticas agrícolas.
Os pesquisadores encontraram sinais de uma eficiente rede de estradas conectando as cidades e as vilas da região e, para surpresa, remanescentes de algumas fortalezas, provavelmente erigidas com o objetivo de guarnecer os centros urbanos – o que indica a existência de conflitos bélicos.
Declínio maia
Estrada-Belli ressalta que a descoberta das práticas de agricultura intensiva vai ao encontro a algumas teorias atuais sobre o colapso da civilização maia. «Refiro-me àquelas que partem da premissa de que os maias clássicos entraram em declínio devido à deterioração do meio ambiente, solos e lagos, causada por eles próprios», comenta.
Conforme publicado em agosto na mesma Science, estudo realizado por cientistas da Universidade de Cambridge e da Universidade da Flórida aponta que um longo período de estiagem na América Central pode ter levado a civilização ao colapso. A teoria mostra que, por volta do ano 1000, houve uma mudança climática drástica por ali.
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Na ocasião, o geoquímico Nicholas Evans, do Departamento de Ciências da Terra da Universidade de Cambridge, afirmou à BBC News Brasil que uma das causas admitidas para essa longa seca pode ter sido o desmatamento realizado pelos próprios maias.
«Existem várias teorias», afirmou ele, aventando também fenômenos como o El Niño e outras suscetibilidades naturais.
Sujar os sapatos
Na mesma edição da Science, um artigo assinado pela arqueóloga americana Anabel Ford, diretora do Centro de Pesquisas Mesoamericanas da Universidade da Califórnia, e pelo antropólogo e arqueólogo Sherman Horn, pesquisador da Universidade Tulane, comenta a descoberta dos cientistas do consórcio Pacunam.
Os acadêmicos, entretanto, fazem uma ressalva: essa «arqueologia de computador», baseada em estudos de imagens, não pode vir a substituir os métodos consagrados e tradicionais de pesquisa arqueológica. Para eles, os pesquisadores devem continuar de «botas no chão», revirando in loco em busca dos indícios históricos.