Estilo de Vida

“Mamihlapinatapai”, a romântica palavra “mais sucinta do mundo” de língua quase extinta da Terra do Fogo

Com apenas uma pessoa fluente, a língua yagan está prestes a morrer; será que essa palavra difícil será a única sobrevivente?

Era primavera quando cheguei ao fim do mundo. Mais precisamente, à cidade de Ushuaia, na Argentina. O dia estava frio e chuvoso, mas o céu abriu enquanto eu caminhava próximo ao Parque Nacional da Terra do Fogo, deixando o sol refletir nas águas glaciais e nas montanhas cobertas de neve.

Em 1520, o navegador português Fernão de Magalhães teria tido uma visão semelhante ao liderar a expedição marítima espanhola até a região. Ele atravessou o estreito que hoje leva seu nome – localizado entre a América do Sul continental e um arquipélago que ele batizou de Terra do Fogo, em decorrência das labaredas que avistou ao longo da costa.

Por milhares de anos, os yagans, comunidade indígena local, acenderam fogueiras para se aquecer e se comunicar. As chamas ardiam em suas florestas, em meio a montanhas, vales e rios, e sobre as longas canoas que eles conduziam pelas águas geladas.

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Cristina Calderon é uma das cerca de 1,6 mil descendentes de yagan que ainda vivem em torno das terras de seus ancestrais. Há 16 anos, ela deu início à uma tradição anual em Playa Larga, em Ushuaia, onde seus antepassados gostavam de se reunir.

O ato, celebrado sempre no dia 25 de novembro, reproduz o costume yagan de acender três fogueiras. No passado, eles faziam isso para anunciar a chegada de uma baleia ou avisar que o banquete de peixe estava pronto. Enviar sinais de fumaça era uma maneira de convocar toda a tribo – eles tinham o hábito de compartilhar alimentos e fazer refeições coletivas ao longo da praia.

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«A importância do fogo vai além de trazer calor para uma região tão hostil», conta Victor Vargas Filgueira, guia yagan do Museu do Fim do Mundo, em Ushuaia.

«Ele serviu de inspiração para muitas coisas», completa.

É o caso de uma palavra que ganhou admiradores e deu asas à imaginação. Mamihlapinatapai vem da quase extinta língua yagan. E, de acordo com a interpretação do próprio Vargas, significa «o momento de reflexão em volta do pusakí (fogo, em yagan), quando os avós transmitem suas histórias para os jovens. É aquele instante em que todos estão quietos».

Mas, desde o século 19, a palavra ganhou um sentido diferente, com o qual pessoas do mundo inteiro se identificam.

A descoberta da Terra do Fogo por Fernão de Magalhães incentivou outras viagens de longa distância para a região. Na década de 1860, o missionário e linguista britânico Thomas Bridges estabeleceu uma missão em Ushuaia. Ele passou 20 anos vivendo no meio dos yagans e compilou cerca de 32 mil palavras e inflexões da língua em um dicionário Yagan-Inglês.

A tradução de mamihlapinatapai, que difere da interpretação de Vargas, foi apresentada em um ensaio de Bridges assim:

«Olhar um para o outro, esperando que se ofereça para fazer algo, que ambas as partes desejam muito, mas não estão dispostas a fazer.»

«O dicionário de Bridges registra ihlapi como awkward (estranho), do qual pode derivar ihlapi-na (‘sentir-se estranho’); ihlapi-na-ta (‘fazer com que se sinta estranho’); e mam-ihlapi-na-ta-pai (algo como ‘fazer um ao outro se sentir estranho’, em tradução literal)», aponta Yoram Meroz, um dos poucos linguistas que estudaram o idioma yagan.

«(A tradução de Bridges) é mais uma tradução idiomática ou livre», acrescenta.

A palavra não aparece, no entanto, no dicionário de Bridges. Talvez porque fosse raramente usada, ou possivelmente porque ele planejava incluir o termo na terceira edição da publicação, em que estava trabalhando antes de morrer em 1898.

«Pode ser que ele tenha ouvido a palavra uma ou duas vezes naquele contexto específico e foi assim que registrou, porque não estava ciente de seu significado mais geral. Ou porque era usada apenas nesse sentido mais específico que ele cita», avalia o linguista.

«Bridges aprendeu yagan melhor do que qualquer europeu até hoje. Mas às vezes era chegado em dar exotismo à linguagem e ser muito prolixo em suas traduções», ressalta.

Precisa ou não, a tradução de mamihlapinatapai de Bridges gerou um fascínio generalizado pela expressão que continua até hoje.

«O termo se popularizou por causa de Bridges e foi citado diversas vezes em materiais em inglês», conta Meroz.

Em muitas interpretações, a palavra passou a significar um olhar entre possíveis amantes. Na internet, sua definição é ligeiramente diferente: «olhar trocado entre duas pessoas, no qual cada um espera que o outro tome a iniciativa de algo que os dois desejam, mas nem um nem outro quer começar».

A arte, o cinema, a música, a poesia e a literatura se encantaram com o romantismo aparentemente implícito na palavra – e sua suposta capacidade de captar de forma concisa uma interação humana complexa. Em 1994, o Livro Guinness de Recordes, listou mamihlapinatapai como a palavra mais sucinta do mundo.

«O significado é muito bonito», afirma uma menina no documentário colaborativo A Vida em um Dia (2011), que retrata um único dia na Terra.

«Pode ser, talvez, dois líderes tribais ansiando pela paz, mas não querendo dar o primeiro passo. Ou duas pessoas em uma festa querendo se aproximar uma da outra, e nenhuma é suficientemente corajosa para tomar a iniciativa.»

Mas o que mamihlapinatapai realmente significava para os yagans provavelmente continuará sendo um mistério. Aos 89 anos, Cristina Calderon é a última pessoa fluente de yagan, um idioma isolado cujas origens permanecem desconhecidas. Nascida na ilha chilena de Navarino, ao longo do Canal de Beagle, que banha a cidade argentina de Ushuaia, ela só aprendeu espanhol a partir dos nove anos.

Meroz recorreu diversas vezes a Calderon para traduzir gravações e textos em yagan. Mas quando perguntou a respeito de mamihlapinatapai, ela não reconheceu a palavra.

«Durante a maior parte da vida, ela não teve muita gente com quem conversar em yagan», pondera o linguista.

«Então, se ela não se lembra desse termo em particular, não quer dizer muita coisa.»

Será que essa palavra tão complexa se tornará a única sobrevivente de uma língua que está morrendo?

«Ela costumava ser chamada de língua moribunda», diz Meroz.

«Acho que hoje em dia as pessoas se refeririam a ela em termos mais otimistas, especialmente os próprios yagans. Há espaço para revitalização. »

Calderon e a neta, Cristina Zarraga, coordenaram oficinas de yagan em Puerto Williams, capital da Ilha Navarino, perto de Villa Ukika, sua cidade natal. Os filhos de Calderon foram a primeira geração a crescer falando espanhol, uma vez que quem falava yagan era ridicularizado naquela época. Mas o governo chileno encorajou recentemente o uso e a preservação de idiomas nativos – e o yagan passou a ser ensinado nos jardins de infância locais.

«É bom ter alguém nativo para fazer perguntas», diz Meroz em relação a Calderon.

«E sempre haverá mais perguntas a serem feitas.»

Muitas complexidades da língua yagan remontam à forma como o estilo de vida daquela comunidade estava ligado à natureza. Meroz se recorda da descrição de Calderon sobre o voo dos pássaros – ela usou um verbo para se referir a uma única ave e outro mencionar um bando. Da mesma forma, existem palavras distintas para «lançar» uma ou várias canoas ao mar. E termos diferentes para «comer»:

«Uma palavra genérica para comer, uma específica para comer peixe e outra para comer marisco», cita Meroz.

No século 19, à medida que o contato entre europeus e yagans se tornava mais frequente, novas doenças dizimaram a população – e o povo indígena perdeu grande parte de suas terras para colonos.

O bisavô do guia Vargas Filgueira, Asenewensis, fez parte da última geração de yagans a viver em tribos, procurando alimento a bordo de canoas nas águas geladas do mar e buscando calor e união ao redor do fogo. De diversas formas, ele foi inspiração para o livro Mi Sangre Yagán («Meu sangue yagan», em tradução livre), de autoria do bisneto.

O autor se lembra de ouvir os anciãos de sua família falando o idioma.

«Eu observava os yagans mais velhos conversando, cortando as palavras com o silêncio.»

«Eles falavam devagar, com pausas, fazendo pouco som. Com poucas palavras, nós falamos muito», diz.

Ele costuma visitar os lugares em que seus antepassados se reuniam, ao longo da costa de 240 quilômetros do Canal de Beagle, que separa Ushuaia da Ilha Navarino. O canal é cortado pelo vento e salpicado de ilhas rochosas repletas de vida marinha selvagem.

Pinguins-de-Magalhães de listras negras e pinguins-gentoo de bico laranja saracoteiam nas margens da Reserva Yécapasela, na Ilha Martillo, completamente alheios aos visitantes. Leões-marinhos e lobos-marinhos se refastelam na costa escarpada.

Nos acampamentos ao redor de Ushuaia, Vargas Filgueira tem o hábito de acender fogueiras e experimentar o que ele acredita ser o genuíno mamihlapinatapai.

«É o que eu senti muitas vezes com meus amigos nas profundezas da natureza, perto do fogo», conta.

«Estamos falando e, de repente, acontece um silêncio. Esse é o momento mamihlapinatapai

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.

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