Quando Marieta Severo sentou-se em frente ao computador para responder às perguntas da imprensa sobre “Noites de Alface”, filme que estreia hoje, não escondia um certo encantamento. Havia 24 horas desde que assistira novamente à versão final da adaptação do livro de Vanessa Bárbara e estreia do diretor Zeca Ferreira em um longa de ficção.
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Filmado em 2018, na Ilha de Paquetá (RJ), onde o cineasta mora há dez anos, a produção é de uma singeleza que encanta até quem esteve por dentro de produção.
“Fiquei emocionada porque é tão bonito como esse filme coloca a ficção como necessidade absoluta na vida das pessoas”, afirma a atriz de 74 anos.
E compara com o contexto em que a produção artística vive. “Estreia agora num terreno de Brasil absolutamente avesso e contrário, onde todos os valores são de asfixiar essa ficção, a imaginação, a cultura e a poesia e enaltecer o oposto disso, que é a violência, a arma, o autoritarismo e o obscurantismo”, completa Marieta, que chegou a ficar internada em dezembro por complicações da covid-19.
No filme, ela vive Ada, a “luz” da trama. Sempre que Marieta aparece, Zeca ilumina o set. Esse, além de assinatura de personagem, é um recurso também para o flashback, já que Ada morreu. Não xingue a repórter, leitor, esse não é um spoiler.
Para trás, um pouco nas sombras, Ada deixou Otto (Everaldo Pontes), marido introvertido e dependente de suas habilidades sociais e de sua receita de chá de alface nas noites de insônia. Sozinho, ele tenta manter algum contato com o lado de fora e preparar a bebida, mas consegue resultados igualmente desajeitados para os dois.
O pequeno cosmos ao redor continua girando e Otto resiste ao contato mais próximo com os vizinhos. No entanto, um mistério, iniciado quando Ada ainda estava viva, o intriga: onde foi parar o carteiro? A leitura de um romance policial instiga ainda mais sua porção investigador e até a falecida entra na sua lista de suspeitos.
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Apesar de Marieta ter vivido por anos uma dona de casa em “A Grande Família”, essa é a primeira vez em que aparece mais envelhecida em cena. Os acontecimentos são poucos e lentos, mas em comum com Nenê, sua vida em comunidade é preciosa.
O filme, que fala de perda, solidão, isolamento (na figura de Otto) e da necessidade do refúgio na imaginação, acabou por tocar em muitos temas com que nos deparamos em tempos de covid-19.
“A ficção tem a capacidade de se antecipar. Esse filme ter sido feito antes da pandemia e desse terror político em que a gente está vivendo e de repente você ter essas leituras todas no filme significa muito. A arte tem essa capacidade infinita de escutar o que está lá na frente e unir com o que está atrás”, acredita Marieta.
Nada de filme em telinha
Everaldo Pontes, que dividiu o papo com a coprotagonista, revelou que não conseguiu assistir ao filme como a colega. Não quis ver numa telinha e espera para assistir no cinema.
Vanessa Bárbara, que soube da história, comentou com o diretor: “O Everaldo não querer assistir no celular é uma coisa muito Otto!”. Nada menos do que um selo de aprovação.
“Quando Zeca me chamou para fazer esse personagem, não tinha lido o livro. Mas, nos primeiros ensaios, senti que aquele universo tinha a ver comigo. A coisa da solidão e do tempo, que, no filme, é um outro personagem. E a velhice, que eu tenho o privilégio de estar entrando. No Brasil, a gente perde o contato com as ficções nessa idade”, opina o ator de 65 anos.