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Cansou de ler as histórias sobre jovens da classe média paulistana que dominaram a literatura brasileira nos últimos anos? Então você vai encontrar um alívio em “F.”, segundo romance de Antônio Xerxenesky, eleito um dos 20 melhores jovens escritores brasileiros segundo a revista britânica “Granta”, em 2012.
O livro chama a atenção, de cara, pela ousadia de seu autor em acreditar na ficção como playground da imaginação – algo que muitos escritores parecem ter esquecido ao apostar em personagens muito semelhantes a si mesmos.
A protagonista de “F.” é Ana, uma garota de 20 e poucos anos que cresceu no Rio nos anos de chumbo da ditadura militar completamente apática em relação à própria vida e aos rumos do país mesmo após ser tirada de casa por um tio ex-militante político.
Ana descobre-se hábil no uso de armas e trilha uma carreira de assassina de aluguel na Los Angeles dos anos 1980. Tudo segue bem até ser contratada para matar Orson Welles – ele mesmo, o diretor de “Cidadão Kane”.
Na preparação para a missão, a jovem fica fascinada pelas ideias sobre arte e ficção articuladas pelo cineasta, que conseguem sacudir o marasmo de sua vidinha blasé.
A trama se desenrola em meio a uma enxurrada de referências pop em torno da música dos anos 1980 e de filmes – muitos filmes! O título refere-se a um deles, “F for Fake” (1973), que marca a segunda reinvenção do cinema por Welles. A reflexão sobre a fricção entre realidade e ficção do longa está pulverizada por todo o livro, o que faz do romance muito mais do que apenas uma história criativa.
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Confira entrevista com Antônio Xerxenesky
– A maior parte da jovem ficção brasileira feita hoje é extremamente autorreferente e, por isso, muito homogênea. Você vai na contramão disso sem qualquer rodeio. Ao escolher esse caminho, você identifica sua ficção como «mais ficcional» ou «verdadeiramente ficcional»?
Sim, sem dúvida. Tenho bastante consciência disso, embora eu não possa dizer que é exatamente uma escolha. Digamos que uma ficção autorreferente não daria um bom romance. A minha vida é totalmente banal, como a de quase todo jovem de classe média que mora em uma grande cidade. Não teria como escrever sobre a minha vida porque nada de muito empolgante acontece nela. Meu único recurso é a imaginação. Além disso, apesar de admirar muitos escritores que usam artifícios como a autoficção, como Thomas Bernhard e J. M. Coetzee, os meus favoritos são os «escritores de imaginação» – e incluo aí a ficção científica.
– Você transforma um personagem real (Welles) em ficção. Por que justo ele – um diretor ousado que se tornou clichê ao figurar nas listas de melhores de todos os tempos?
Em primeiro lugar, porque Welles dirigiu F for Fake, um grande elogio à ficção e à falsificação. «Por que não falsificar Welles?», eu me perguntei. Em segundo lugar, porque Welles revolucionou o cinema, i.e., mudou os rumos da cultura, e meu livro gira muito em torno disso, de um período de transição e mudança radical, de uma paranóia com o que pode dar errado no futuro que se delineia.
– Como autor, como você lidou com o limite entre o respeito histórico a essa figura e a necessidade de sua criação? Quanto tempo durou a pesquisa em torno dele?
Durou cerca de um ano e meio, e foi uma das coisas mais difíceis do processo. Li biografias escritas de diversos pontos de vista (como da filha, por exemplo) e inúmeras entrevistas, para pegar o jeito de falar dele. Parte das frases que o personagem Orson fala foram ditas, de forma modificada, pelo Orson real em alguma ocasião. Isso me travou por um longo tempo. Chegou uma hora em que disse: dane-se, esse é o meu Orson, minha falsificação, e passei a incluir toques meus. Além disso, meu Orson vive cenas que o Orson real nunca viveria.
– Li que você já foi muito cinéfilo. A postura de Ana diante dos filmes mencionados ao longo do livro coincide com a sua? Se sim, isso provocou um reencontro seu com o cinema?
O gosto da Ana para cinema é um pouco diferente do meu. Há filmes que ela critica que eu gosto e vice-versa, afinal ela é um pesonagem ficcional, não uma porta-voz das minhas opiniões. Mas conheço muito bem a sensação de descobrir o cinema, descobrir todo o potencial dessa arte. Entender o que é um filme autoral e reconhecer marcas de um diretor nos seus filmes. A primeira vez que uma pessoa tem essa «revelação» é marcante, e acho que emprestei à personagem um pouco desse entusiasmo que lembro de sentir.
– O período no qual você ambienta a trama foi uma escolha (você já queria trabalhar com os anos 1980) ou uma imposição (você queria trabalhar em cima da morte de Welles e, por isso, precisava estar nos anos 1980)? Quem cresceu nos anos 1990 ouviu temeridades sobre os anos 1980. Para você, essa é uma visão injusta?
Logo que tive a primeira ideia de trabalhar com a figura de Welles, fui conferir quando ele morreu. Vi a data: 1985. A primeira coisa que pensei foi: Sisters of Mercy, The Cure. (Eu estava numa fase muito gótica.) E pensei: que curioso, morre uma pessoa que definiu uma cultura no período do nascimento de uma cultura (musical, cinematográfica) totalmente diferente. E o meu livro, acredito, mostra esse contraste e tenta construir pontes. Nasci em 1984, portanto não posso falar muito sobre os anos 1980, mas sempre tive uma grande fixação pela música da época. As pessoas adoram ironizar os anos 1980, as cores, os teclados, as vestimentas exageradas etc. etc., mas eu sempre me identifiquei muito mais com essa década do que com outras idealizadas pelos jovens da minha geração, como os míticos anos 1960. Sinto que na década de 80 houve uma convergência muito grande entre música pop e a vanguarda. O pop era inteligente. De certa forma, essa é a «poética» (nunca me perdoarei por usar essa palavra) que sigo: a tentativa de habitar um meio do caminho entre a cultura de entretenimento e o experimentalismo.
– A ditadura brasileira faz uma «participação especial» no livro em um ano em que ela tem sido bastante revisitada. Você teve receio de entrar de alguma forma no debate em torno dela?
Tive receio sim, pois não é um assunto fácil, exceto se o seu narrador assumir posições óbvias, e a minha narradora é de um ambiguidade moral terrível. Por muito tempo cogitei pesquisar a fundo o tema, ler pilhas de livros de história. Mas, no final, pensei que minha narradora vivia situações que não compreendia bem, e era apenas uma garota durante a parte mais pesada da ditadura. Então acabei usando quase tudo que «ouvi» sobre a época através da voz de minha mãe, que se formou em Direito em 1968, ou seja, foi jovem no pior período possível para ser jovem.
– Sua escrita tem leitura fluida a despeito do mar de citações. Há algum esforço da sua parte para ser pop?
Não diria que há um «esforço», pois é algo natural para mim. Nunca serei um desses escritores sérios e super respeitados. Diria até que o meu público não é o mesmo dos que leem os nomes mais consagrados da literatura brasileira. Escrevo livros divertidos porque gosto de músicas divertidas, de filmes divertidos e de livros divertidos. A última coisa que quero no mundo é redigir um romance chato.
– Pelo que entendi, este foi seu primeiro romance com deadline. Como foi essa experiência?
De fato, foi o primeiro. Mas eu violei em um ano e meio a deadline, então não mudou muito (risos). Olha, o mais difícil não é escrever com deadline, e sim querer ser escritor tendo um emprego CLT de 8 horas por dia e ainda fazendo alguns trabalhos por fora para completar o orçamento. Não é nada fácil arranjar tempo livre no meio disso tudo, ainda mais contando que quase nunca deixei de sair para beber com amigos por causa da escrita.