Nos dias de hoje, ouvir que alguém é fundamentalista nos remete, por influência da mídia mundial, às cenas de terroristas, invariavelmente de turbante e túnica, explodindo ônibus escolares na Europa e mercadinhos poeirentos em cidades iraquianas. Não nos damos conta de que o fundamentalismo, atitude ou movimento de cunho conservador que prega obediência rigorosa a um conjunto de regras ou princípios, nos afeta muito mais cotidianamente do que pensamos.
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Sem qualquer crítica a quem professe seus dogmas e sua fé de maneira rigorosa, inadmitindo sequer discutir outras visões de mundo que não a sua, ainda que não necessariamente antagônicas, querer impor a terceiros, especialmente aos que não vivem diretamente sob a tutela legal do fundamentalista (como ocorre com pais em relação a filhos menores), crenças e valores próprios como se verdades absolutas fossem, é o que existe de mais ignorante no campo da convivência humana.
Em nome do puritanismo, independentemente de qual o matiz religioso do puritano, centenas de milhões de pessoas foram assassinadas ao longo da história exclusivamente porque acreditavam ou não em determinado deus, porque professavam ou não sua fé em determinados dogmas, desde o “Gênesis” da Bíblia até as virgens do paraíso do Corão, do humor bom ou mau de uma serpente esculpida em pedra até os sinais galácticos de uma civilização extraterrestre.
Vivemos tempos paradoxalmente estranhos: nunca a ciência nos deu tantas provas de que podemos avançar em longevidade, curar doenças outrora terríveis, dominar ciclos químicos e físicos de extrema complexidade, reverter panoramas climáticos catastróficos mas, ao mesmo tempo, cresce o número daqueles que se acham rotulados ou escolhidos pelo seu “deus” particular para regrar ou estabelecer critérios para o uso do corpo alheio, do que deve ou não integrar o prato alheio, do que é que os filhos dos outros devem assistir no teatro.
Não sou, de forma alguma, adepto ao “libera geral!”, até porque, se nos sujeitamos a viver em um ambiente social, temos que nos pautar por uma média tolerável que consiga congregar os mais extremistas em torno de projetos coletivos. Entretanto bastam quinze minutos de navegação em qualquer rede social para que se perceba que o nível de exasperação das pessoas e de sua crença em suas verdades absolutas atingiu níveis muito próximos daqueles que fizeram precipitar grandes catástrofes humanas de outrora, guerras, matanças, fome, êxodo.
O desrespeito ao outro, à ideia contrária, às escolhas políticas, sexuais, culturais, esportivas cavalga a passos largos para assumir o protagonismo social. Isso nunca trouxe boas coisas. Estamos à beira do momento em que um médico diz a uma mãe que seu filho tem intolerância à lactose e a exasperada genitora, em vez de mudar a dieta da criança, resolve contratar um advogado para processar a vaca.