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Pernas curtas, cauda longa

rubem-penzUma das bases da minha educação foi não mentir. Meus pais eram enfáticos: qualquer coisa errada que houvesse feito, quando dissimulada, receberia penas com agravante. Em contrapartida, uma confissão com arrependimento sincero, ainda que não me livrasse do castigo, findaria em absolvição. O argumento definitivo para me convencer de que não valeria a pena mentir era ter a mentira pernas curtas. Cedo ou tarde a verdade viria à tona e, com ela, o agravamento. Desnecessário dizer que apliquei o mesmo método com os filhos: confiança é, de longe, a melhor base para um relacionamento bem construído.

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O maior êxito do comércio digital, a forma de oferecer e distribuir bens e serviços à distância e de forma virtual, é o que se costuma chamar de cauda longa. Do que estamos falando? Segundo Chris Anderson, baixos custos de armazenagem e distribuição oferecem, no longo prazo, resultados positivos para algo que possa permanecer “comprável” por muito tempo, mesmo que este produto atenda a um nicho restrito de consumo (ou especialmente para estes casos). Este alongamento de vida útil recolocou no mercado excentricidades que pareceriam sepultadas pela massificação.

A palavra do ano escolhida pelos dicionaristas britânicos de Oxford foi pós-verdade. O termo diz respeito ao fenômeno “tsunâmico” de versões sobre os fatos que assolam as novas mídias. Tais versões poderiam estar contaminadas de inverdades facilmente comprováveis à luz de rápidas investigações, ou quando defrontadas por esclarecimentos dos envolvidos. O problema é que desmentidos nem sempre – ou quase nunca – alcançam a dimensão da onda de um boato e, depois, o que resta é pura destruição. Pode parecer até ingenuidade crer no fato de que os jornalistas da grande mídia sejam imunes ao engano, mas o descontrole também não é a melhor vacina.

Qual seria a ligação destes três parágrafos? Uma constatação: na Era Digital, a mentira continua com suas pernas curtas, mas foi dotada de uma longa, compridíssima cauda. Por isso, mais do que antes, é bom negócio plantar notícias falsas: em determinados nichos, elas serão consumidas por extensos períodos como sendo verdade e, ali, os desmentidos podem vir a ser menos eficazes. Triste, não? Grave. A paradoxal saída é você desconfiar de tudo para, aos olhos dos outros, continuar merecedor de fé. Punir quem mente com o descrédito, oferecer adiante confiança. A lamentar, a verificação que a pós-verdade, esse bicho esquisito de pernas curtas e cauda longa, pode corroer muitos relacionamentos.

Rubem Penz é escritor, baterista, orientador da oficina literária Santa Sede e autor do livro “Greve de Sexo” (Ed. Buqui). Saiba mais em www.rubempenz.net 

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