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Crioulo vosmecê

gustavo varella cabral colunistaAs palavras acima, carregadas de odioso preconceito, eram muito utilizadas no início do século passado para rotular negros subservientes que, mesmo explorados e pobres, sorriam, faziam mesuras e se curvavam a qualquer tipo de expressão injuriosa, comando verbal ou proposta indecorosa feita por alguém social ou politicamente elevado.

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O serviço na casa grande, uma sobra qualquer da cozinha, uma roupa feita de tecido de gente ou um colchão de palha fora da senzala eram o preço da anulação moral que pagavam em troca da dispensa das agruras do  engenho ou do cafezal: sua insubmissão geraria mais dor.  Dia desses, numa roda de amigos, discutindo sobre o desastre ambiental do rio Doce e o emporcalhamento do meio ambiente e de nossas cidades, deparei-me com o seguinte repto: “Você deveria ser o primeiro a defender a empresa onde seu pai trabalhou 30 anos tirando seu sustento!”.

Opiniões, ideias e valores cada um de nós tem os seus e, uma vez que forjados de experiências pessoais distintas, merecem todo o respeito ainda que completamente antagônicos ao nosso modo de pensar. Vale (sem trocadilho) entretanto uma reflexão: nós nos transformamos numa sociedade “vosmecê”, roubada, aviltada e emporcalhada de todas as formas, mas feliz e sorridente, de radinho de pilha no ouvido, esperando o jogo de domingo para comemorar o campeonato com cachaça e churrasquinho?

Que indolência cívica é essa, que tipo de pasmaceira ou de miopia ética nos faz aceitar placidamente (no máximo com um ou outro arroubo de domingo na praça), gente metendo a mão em recursos públicos, fraudando licitação, superfaturando, destruindo o meio ambiente, expatriando dinheiro? Exemplos dessa pusilanimidade vemos todos os dias quando pessoas, no exercício ou não de cargos públicos, processadas por uma diversidade de crimes, aparecem em eventos sociais, festas, restaurantes e ainda recebem efusivos cumprimentos de alguns, rabichadas caninas ou o silêncio acanhado e medroso de muitos outros.

Presenciei uma vez na Argentina, no café Tortoni, um homem já idoso chegando, pedindo seu chá, mas saindo rápido sem bebê-lo depois que, identificado pelos compatriotas como antigo prócere da ditadura, começou a ser vaiado. Exemplo público de dignidade e vergonha na cara de nossos hermanos. É evidente que todos têm direito a um julgamento justo e a um processo pleno de garantias. Mas a reprovação pública, a censura social e até a cara feia, mais que qualquer pena ou multa, funcionam como um farol que ilumina o caráter de uma sociedade.

 

Gustavo Varella Cabral é advogado, professor, especializado em Direito Empresarial e mestre em Direito Constitucional.

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