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Mãos livres

andre-andres-vitoriaAqueles dedos não eram os dele. Grossos, inchados, eles me eram estranhos. Não os reconheci. Porque suas mãos sempre foram macias, sedosas como a sensação no paladar provocada por um Tempranillo bem envelhecido. A comparação não é ideal. Seria melhor citar um bom Primitivo de Manduria, não por conta da maciez de um ou de outro, afinal, são deliciosos. Mas por conta da nacionalidade: vinhos italianos são os preferidos de papas e padres, algo fundamental para quem a religião sempre foi primordial. Suas mãos, finas, receberam um terço de João Paulo II, numa das primeiras visitas do Papa polonês ao Brasil.

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A foto do presente foi parar na revista “Manchete”. Lembro-me da imagem, publicada há 35 anos: a mão estendida, o terço na palma de pele fina… Como me lembro  da maneira como ela me conduziu para a primeira aula numa escola distante de minha casa. Escola pública. Mas de boa qualidade, como era a maioria das escolas públicas da época. Ensinou-me a andar de ônibus. “Na hora de descer, passe por trás do ônibus. Cuidado. Veja se vem carro”. Ensinou-me mais, muito mais. Mostrou-me o valor da generosidade. A riqueza da simplicidade. E a grandiosidade existente na humildade. Com seus atos, enfim, mostrou-me como agem os homens de boa vontade.

Há muitos anos, quando saí de casa para estudar, inseguro como sempre, estava preocupado com os gastos extras, pesados para um lar de muitos irmãos e renda limitada. “Vai. A única herança que sou capaz de lhe dar, com segurança, é o estudo”, ele disse. E eu fui. Vi cada vez mais o mundo. E o vi cada vez menos. De certa forma, nesse ponto também o segui. Porque ele, a seu modo, muito peculiar, saiu pelos países, movido pela curiosidade, pela inteligência e a incrível capacidade de se comunicar em qualquer língua, mesmo porque sempre teve um Português todo próprio – as correspondências não eram trazidas pelo carteiro, mas pelo “estafeta”; as casas não tinham banheiros, mas “instalações”… Filho de maestro, trouxe para a família a paixão pela música. Mais: com a música mudou a rotina e a vida de uma cidade, enchendo suas ruas, ano após anos, de ritmo e dança, trazidos de terras distantes. A festa popular por ele alimentada ganhou corpo, ficou gigantesca. Nela, pessoas se conhecem, amizades se renovam, amores são selados em beijos com gosto de maçã do amor.

Os dedos inchados, quase inertes, no hospital, eram irreconhecíveis porque eu os vi ágeis. Fortes se preciso, delicados quando necessário. Durante dois dias fiquei ali, ao lado, talvez com a ilusão de recuperar o tempo perdido. E com a certeza da proximidade do momento inescapável. Ele veio. E ao longo de meses, as palavras sobre esse momento se recusavam a sair. Como se minhas mãos estivessem entrelaçadas nas mãos de meu pai. E ele finalmente as tivesse liberado para eu produzir esse texto… Que nada tem a ver com vinho, eu sei, mas talvez sirva para lembrar a necessidade de brindarmos, hoje e sempre, a presença entre nós de pessoas grandiosas e amadas. Como os nossos pais…

André Andrès é colunista de vinhos  há cinco anos. Mas sabe que ainda tem muito a aprender sobre tintos, brancos e espumantes

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