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Intolerância é o que vemos no espelho

xico-vargas colunistaA impossibilidade de entoar cânticos do candomblé no velório de Vonduce de Jesus Pereira, 64 anos, no cemitério de Campo Grande, enquanto em capelas próximas católicos elevavam preces e evangélicos cantavam por seus mortos, mostra que o sentimento capaz de apedrejar uma criança como Kaillane Campos, 11, por diferença de credo, está tão vivo quanto há 10 dias, quando ela foi ferida.

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Somos assim, covardes em essência. Capazes de subjugar minorias para não conviver com diferenças que eventualmente nos obriguem a olhá-las. Há mais de século alimentamos ideia segundo a qual vivemos no maior país católico do mundo, mas escondemos que a construção dessa história deitou as raízes da intolerância. E as divindades expulsas da cabeça dos índios eram nada além da representação imaginária de forças da natureza.

Exemplos não nos faltam da entrega irresponsável à religião de questões fundamentais para o desenvolvimento da vida em sociedade. O Brasil arrastou por décadas o reconhecimento da separação legal entre casais, porque Deus assim não admitia. Filhos de uniões informalmente desfeitas carregaram por anos a fio o estigma da excomunhão. E hoje o papa diz que, sim, há momentos em que os casais precisam ser desfeitos.

Em nome do Todo Poderoso já depositamos pedras no caminho da ciência e impedimos a distribuição de camisinhas e anticoncepcionais a jovens faveladas, porque não pode haver sexo antes do casamento. Hoje a fé o admite, mas prefere a morte de mais de 100 mil mulheres por ano – resultado de complicações resultantes de aborto clandestino – a discutir esse candente problemas de saúde pública.

Há três anos conseguimos ocupar a agenda do país com a tese de que o filho de Deus crucificado, numa parede da sala de julgamento dos tribunais, significava a entrega da Justiça ao equilíbrio da fé e à justeza das palavras do Senhor. Foi preciso o excepcional jurista Paulo Brossard, em belíssimo artigo, explicar que, desde 1890, decreto do ministro Rui Barbosa deixava claro que a presença do crucifixo servia à lembrança dos juízes que ali estava o maior injustiçado da história, vítima da omissão de juízes em seis julgamentos.

Se fomos capazes de subterfúgios para tornar símbolos  expressão de vantagens religiosas, imaginem o que podemos  agora, que usamos casas legislativas para cultos e missas em  horário de expediente. Se negamos aos parentes de uma velha morta o direito de enterrá-la como acreditam que devem, o que fizemos foi abandonar os cemitérios às organizações religiosas. Se atribuímos a uma criança de 11 anos a posse do fogo do inferno, o que devemos temer não é a falta de leis ou discursos, mas o que vemos no espelho todas as manhãs.

O jornalista Xico Vargas mantém a coluna ‘Conversa Carioca’, de segunda à sexta-feira, no jornal ‘BandNews Rio 2a edição’, além da coluna ‘Ponte Aérea’ em xicovargas.uol.com.br.

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