A primeira imagem que vem da gula é a de um menino gordinho subindo no armário para roubar biscoito. Talvez de propósito a gula tenha sido sublimada ao longo dos anos como o “pecado capital” mais tênue, justificável, tolerável aos monges roliços dos mosteiros, que, à exceção das rezas e outras aventuras ocultas, dedicavam-se com afinco à arte de talheres e copos, alguns com contribuições espetaculares para a humanidade, como os abades cervejeiros e vinhateiros. Ocorre que a gula, sem condescendência, é um dos mais perniciosos comportamentos humanos. E não me refiro apenas à parte que traz como consequência os pneuzinhos ou o colesterol alto, eis que esses são problema de cada um com seu corpo. Falo daquela que extrapola a visita noturna à geladeira ou o carrinho no supermercado: a gula compulsiva em consumir mais e mais. Concentremo-nos nos alimentos. A pressão do consumo sobre o meio ambiente já extrapolou as piores previsões. Alguns cardumes estão reduzidos a 5%: já se consome mais do mar e dos rios do que eles podem produzir. Os solos estão se esgotando a uma velocidade impressionante. As abelhas que polinizam 90% das plantações estão morrendo. A água potável está cada dia mais difícil de ser obtida e em alguns anos a previsão é de que 1/3 da humanidade esteja em situação de risco de sobrevivência. Toda vez que falta água ou comida, ou ambos, estouram guerras e o caos se instala. Muito embora nós, brasileiros, tenhamos crescido alheios a esse ambiente de guerra conflagrada e sob os versos de Caminha (“aqui em se plantando tudo dá”), a continuar o ritmo seremos irremediavelmente afetados. Produzir alimentos está cada dia mais caro e complexo, o que motiva os grandes produtores a optar por produtos de escala como soja, milho e outras forrageiras para animais, criados confinados num regime de campo de concentração. Gostos e sabores são cada dia mais quimicamente induzidos. Cores e formas de alimentos têm sido padronizadas em monótonas rações. Estamos próximos do ponto de não retorno, quando determinadas culturas não mais se justificarão comercialmente pelo preço final impagável. Daí, com sorte, passaremos a comer só coisas artificialmente induzidas, a beber água de reuso ou dessalinizada a um alto custo. Já vivemos em casas e condomínios cercados de tela de arame e cadeados. Nossos filhos andam com coleiras eletrônicas apelidadas de smartphones. E avançamos rumo à ração nossa de cada dia. Em breve estaremos levando a vida de um poodle. Ou de um vira-latas baldio, conforme nossa situação social. É o círculo vicioso da gula: dia de muito, véspera de pouco.
Gustavo Varella Cabral é advogado, professor, especializado em Direito Empresarial e mestre em Direito Constitucional.