Todos os indígenas que vivem ou já viveram nas Américas descendem de uma única população que chegou ao Novo Mundo vinda do leste asiático, através do estreito de Bering, há cerca de 20 mil anos. A conclusão, de um trabalho de uma equipe internacional de 72 arqueólogos e geneticistas – entre os quais 17 brasileiros -, refuta as teorias mais discutidas ou aceitas até hoje sobre o povoamento do continente posteriormente «descoberto» por Cristóvão Colombo.
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Assinado por pesquisadores das universidades de São Paulo (USP) e Harvard, dos Estados Unidos, e do Instituto Max Planck, da Alemanha, o artigo científico foi publicado nesta quinta-feira na prestigiosa revista científica Cell.
Para chegar às conclusões, os autores se basearam na análise do DNA fóssil de 49 esqueletos provenientes de 15 sítios arqueológicos, dos quais dois na Argentina (11 esqueletos com idades entre 8,9 mil e 6,6 mil anos), um em Belize (três, de 9,4 mil a 7,3 mil anos), quatro no Brasil (15, de 10,1 mil a 1 mil anos), três no Chile (cinco, de 11,1 mil a 540 anos) e sete no Peru (15, de 10,1 mil a 730 anos).
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Dos esqueletos brasileiros, sete, com cerca de 9,6 mil anos, foram escavados no sítio arqueológicos Lapa do Santo, na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais; cinco, com idade em torno de 2 mil anos, no sambaqui Jabuticabeira 2, em Santa Catarina; e dois, de 6,7 mil anos, e um, com 5,8 mil anos, nos sambaquis fluviais Laranjal e Moraes, respectivamente, localizados no Vale do Ribeira no estado de São Paulo.
O novo trabalho poderá desvendar um mistério que intriga cientistas e pesquisadores – e até pessoas leigas – desde 1492, quando Colombo desembarcou numa ilha do Caribe e foi recebido pelos tainos, um povo amistoso – estava convencido de que havia chegado às Índias.
Desde então, persiste a indagação: como as populações encontradas pelo navegador genovês a serviço da Espanha chegaram a este novo mundo descoberto por ele, mais tarde batizado de América? Teorias não faltam. Há desde aquelas que afirmam que o evento ocorreu há cerca de 12 mil anos até as que apostam em 100 mil anos ou mais.
As primeiras teorias
A hipótese mais antiga, e que permaneceu como a mais aceita por mais tempo, é a conhecida em inglês como Clovis-first (Clóvis-primeiro). Deve seu nome a um sítio descoberto em 1939, no Novo México, Estados Unidos, no qual foram encontradas pontas de flechas feitas de pedra datadas de 11,4 mil anos. Segundo essa hipótese, a chegada teria ocorrido há cerca de 12 mil anos.
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A ideia acabou caindo em descrédito após novas descobertas arqueológicas, como o sítio Monte Verde, no Chile, onde foram encontrados resquícios humanos com mais de 12.500 anos – anteriores, portanto, à cultura Clóvis.
Uma segunda teoria foi proposta pelo bioantropólogo Walter Alves Neves e pelo geógrafo Luís Beethoven Piló, ambos da USP, em seu livro O Povo de Luzia – Em Busca dos Primeiros Americanos. Eles a chamam de Dois Componentes Biológicos Principais, porque, segundo essa tese, houve duas levas migratórias iniciais: a primeira há 14 mil anos e a segunda, há 11 mil, também vindas da Ásia pelo estreito de Bering.
A mais antiga seria composta por uma população com traços que lembram os dos africanos e aborígenes australianos. É desses pioneiros que descenderia a famosa Luzia, o fóssil mais antigo de que se tem registro no país, com 11.300 anos.
Seu crânio foi descoberto em 1974, pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire, na região de Lagoa Santa. Durante mais de 20 anos, os restos desse indivíduo jovem, do sexo feminino, ficaram guardados nas gavetas do Museu Nacional do Rio de Janeiro – um incêndio que destruiu o museu no dia 2 de setembro, mas pesquisadores conseguiram encontrar, nos destroços, quase todos os pedaços do crânio.
Em 1995, Neves fez medidas antropométricas do crânio, que mostravam, segundo ele, que Luzia tinha mais a ver com os africanos que com os índios atuais. Em 1996, o antropólogo forense britânico, Richard Neave, reconstruiu a face dela. O resultado foi o rosto de uma mulher com traços semelhantes aos dos africanos e aborígenes australianos atuais.
Há outra teoria ainda mais controversa e polêmica, proposta pela arqueóloga Niéde Guidon, com base em suas descobertas em vários sítios arqueológicos no sul do Piauí. Para ela, o homem chegou à região há nada menos que 100 mil anos, vindo diretamente da África, cruzando o Atlântico, numa época em que o planeta estava num período glacial, com o mar 120 metros abaixo de seu nível atual.
Avanço nas descobertas
O trabalho publicado agora na Cell põe em xeque todas as teorias anteriores. De acordo com o arqueólogo André Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), da USP, um dos autores do artigo, a forma do crânio não é um marcador confiável de ancestralidade ou de origem geográfica.
«A genética, por outro lado, é a técnica que se presta por excelência a esse tipo de inferência», explica. «No nosso estudo, são apresentados os primeiros resultados positivos para a extração de DNA dos esqueletos de Lagoa Santa.»
Isso só foi possível graças a avanços metodológicos desenvolvidos pelo Instituto Max Planck. «Antes, a extração do DNA fóssil era quase impossível de ser realizada», diz Strauss. «A sua fragmentação extrema e a alta incidência de contaminação fizeram com que durante quase duas décadas diferentes grupos de pesquisas tentassem sem sucesso extrair o material genético dos ossos de Lagoa Santa. Agora, os novos métodos tornaram isso possível.»
Além da análise do DNA fóssil, também foi feita uma nova reconstituição da face do Povo de Luzia. A tarefa coube à especialista em reconstrução forense Caroline Wilkinson, da Liverpool John Moores University, na Inglaterra, discípula de Neave e responsável pela reconstrução facial do rei britânico de 1483 a 1485, Ricardo III.
O trabalho atual foi feito a partir do modelo digital de um crânio do sítio arqueológico da Lapa do Santo. «Por mais acostumados que estejamos com a tradicional reconstrução facial de Luzia, com traços fortemente africanos, essa nova imagem reflete de forma muito mais precisa a fisionomia dos primeiros habitantes do Brasil, apresentando traços generalizados e indistintos a partir dos quais, ao longo dos milhares de anos, a grande diversidade ameríndia se estabeleceu», explica Strauss.
Disso se infere que o povo que chegou à América há 20 mil anos saiu da Ásia antes dele e seus parentes que lá ficaram terem adquirido os traços físicos que os caracterizam hoje, assim como os indígenas atuais. Embora tênue, é um ponto em comum com a hipótese de Neves, que também propôs que a primeira leva de migrantes teria saído da Ásia antes da evolução que levou os asiáticos a terem os traços que os distinguem atualmente.
Resta explicar como aquela população e os ameríndios atuais, que deveriam ter, há 20 mil anos, os traços genéricos apresentados pela reconstrução facial do Povo de Luzia feita por Caroline, evoluíram paralelamente, separados por milhares de quilômetros e um oceano e sem troca genética, para a morfologia semelhante que apresentam hoje.
O que a análise do DNA fóssil realizada pela equipe internacional deixa claro é que o grupo humano que chegou à América há 20 mil anos compartilha dois terços de sua ancestralidade com as populações atuais do leste asiático e um terço com europeus. «Não existe nenhuma ancestralidade entre os índios americanos – do passado ou do presente – com populações da África ou da Austrália», garantes Strauss.
De acordo com ele, há 16 mil anos essa população primária se dispersou rapidamente por todo o continente americano, tendo alcançado até mesmo o sul do Chile há cerca de 14 mil anos. «Em algumas regiões do continente, como no sul do Brasil, esses grupos originários permaneceram majoritariamente inalterados até o contato europeu – caracterizando uma impressionante continuidade demográfica», diz.
Em outras regiões da América do Sul, no entanto, especialmente Lagoa Santa, a história foi bem diferente. «Os dados genéticos do nosso trabalho mostram que essas populações apresentam uma surpreendente conexão com a famosa cultura Clóvis», explica Strauss.
«Uma das maiores descobertas do nosso estudo foi determinar que esses grupos Clóvis migraram para o sul, deixando descendentes por diversas regiões da América do Sul, algo inimaginável até então.»
Surpreendentemente, o Povo de Luzia, que imaginava-se ter ancestralidade não-ameríndia, revelou-se como uma dessas populações descendentes de Clóvis.
«Essa população, entretanto, por razões desconhecidas, não perdurou por muito tempo», informa Strauss. «A partir de cerca de nove mil anos atrás ela desapareceu, sendo substituída pelos ancestrais diretos dos grupos indígenas que habitavam o Brasil durante o período colonial.»
Quanto à teoria de Niéde, Strauss diz que, se seres humanos pisaram ou viveram nas Américas antes de 20 mil anos, não deixaram rastros nem traços genéticos nos ameríndios do passado ou nos atuais.
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